terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Dia 31

Mas que grande trinta e um,
ninguém me convidou para o réveillon,
o que irá ser de mim,
não vou poder abanar o bum bum,
lançar serpentinas,
gritar, pular, rodopiar,
fantasiar, rir, gargarejar,
vomitar

Se eu fosse ao réveillon
levaria o meu melhor fato,
cheiraria a alfazema e a mato,
e só quereria escutar o som
da poesia e do fado

Mas por ser assim,
ninguém me convidou para o réveillon,
o que irá ser de mim
esta noite à meia noite,
mas que grande trinta e um
ninguém me convidou para o réveillon

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Uma manhã em Paris

Naquela manhã em Paris
fazia muito frio
e estava feliz,
percorri a Rua de Rennes,
e, ao passar por uma carrinha,
alguém me ofereceu uma sopa de castanhas,
bem quentinha

Orei em Saint Germain-des-Prés
e saí de lá mais vigoroso
que até me apeteceu calcorrear Paris de lés-a-lés
naquela manhã fria de outono

Mas só cheguei à Notre-Dame.

Aí descansei e sonhei,
até parece que vi
um Corcunda a circundar por lá,
e tive a sensação que ouvi
os sons das misteriosas gárgulas
e quimeras
que a sumptuosa Catedral ostenta,
mas não percebi se elas
estavam a anunciar desgraças,
ou, antes, radiosas primaveras.
Não. Não tenho a imaginação de Victor Hugo.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Uma viagem de autocarro

Ontem
entrei no autocarro
e não era hora de ponta
e ouvi:
- já não ouço nada do ouvido esquerdo;
- o que será feito do vizinho Alfredo;
- ainda não morreu, mas está a dar muitos trabalhos;
- eu cá já tenho que chegue para mim,
uma artrose, uma hérnia e cataratas;
- e eu arranjei agora esta amante
(e mostrou uma bela bengala);
- eu cá ainda vou ao bailarico todas as quartas,
e não há quem chegue para mim;
- olha, eu agora só lá vou com muito pim-pim,
e ás vezes nem assim;
- eu cá quero é sopas e descanso;
- sabes quem é que morreu? O Sr. Sancho;
- já era muito velhinho, coitadinho;
- que descanse em paz;
- sabes quem é que já está no lar?
- o vizinho Gaspar,
mas parece que não tem dinheiro para o pagar;

Entretanto,
entrou no autocarro
uma jovem toda cheia de encanto
a falar ao telemóvel:
- tipo, aonde vais passar o ano, tipo,
gostava muito de ir contigo, tipo;
(próxima paragem Rua dos Jarros)
eu vou sair deste autocarro, já

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

É Natal

Hoje é dia de Natal
estamos todos felizes
porque comemoramos
o nascimento do Menino Jesus
exactamente há 2013 anos
(é mêêêmo?
questiona um amigo brasileiro,
que, cá para mim,
segue a seita do demo)

Confirmo que é Natal
e que comemoramos
o nascimento do Deus Menino
e não a chegada do Pai Natal
puxado por renas
a voar pelos céus, num contínuo vai e vem,
para entregar prendas
apenas
aos meninos que se portaram bem

Confirmo que é Natal
e que o Pai Natal
nunca pôs nenhuma prenda
no meu sapatinho,
quem o fez
foi o Jesus Menino,
que me dava bolachas baunilha,
lenços de assoar
e umas peúgas para calçar

E cantávamos
"entrai pastorinhos entrai
por aquele portal sagrado"
e beijávamos
o pezinho do Menino Jesus
retirado do presépio
feito de musgo e de casas e de pastores
e de ovelhas e de rios e de pontes,
tudo a sério
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Feliz Natal a todos

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

A crise

Por aqui andamos todos deprimidos
o capitalismo apanhou-nos distraídos
e fez batota
e agora deu-nos a volta
e não podemos comprar
nem pescada nem marmota

O comunismo também fez batota
vendeu-nos um paraíso terreno
feito de igualdade e felicidade
e afinal abriu-nos a porta
para o que pode ser o inferno

Vamos acreditar em qualquer outro "ismo"
ou vamos para o abismo
que nos é agora oferecido
com convite para darmos um passo em frente
e deixarmos de ser gente

Mas qual "ismo"?
Há tantos
Talvez um novo "O Revoltismo"

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Despedida da Alfândega de Lisboa, a mui ilustre Senhora

O Tejo nasce na Serra de Albarracin
e os indígenas chamam-lhe Tajo
e, por entre montes e outeiros,
corre por aí abaixo
até chegar a Lisboa

E é em Lisboa que o Tejo entra no mar,
e na ânsia de querer ser sempre Tejo,
mesmo mar adentro,
ainda simula que é mar
antes de nele entrar,
até parece que é o mar que desagua no Tejo
e não o Tejo no mar

E foi nas margens deste Tejo quase mar
que encontrei um dia uma mui ilustre Senhora
que morava em Alfama, no Terreiro,
e que me ensinou a ser adulto e a trabalhar

E agora que sou quase mais do que adulto,
chegou a hora de me ir embora
e se virem por aí essa mui ilustre Senhora
digam-lhe que lhe estou muito grato por tudo

Muito obrigado também
caros colegas aduaneiros,
bem hajam,
vou deixar de os ter por companheiros,
mas levo na minha bagagem
a vossa amizade e camaradagem

Adeus a todos...Adeus terminais do Rio Tejo,
agora dispo a farda e vou para a "peluda",
talvez ainda aprenda a tocar realejo,
ou a escrever como o Neruda

Ou então vou contar grilos na primavera,
gaivotas e cigarras no verão,
vou para a vindima no outono
e no inverno apanho azeitona

De manhã levanto-me e corro,
à tarde durmo a sesta e ressono,
à noite enfio as pantufas e o gorro,
e de madrugada sonho que tenho sono

E no pouco tempo livre que resta
vou tentar continuar a apreender
e a seguir o cheiro do alecrim e da giesta
até que o sol e a lua me deixem ser

domingo, 22 de dezembro de 2013

O rio da minha aldeia

Sempre imaginei
a minha aldeia com um rio,
ali a nascente,
acolá um açude,
e mais além uma ponte,
águas revoltas no inverno
e talvez mansas no verão

O rio da minha aldeia
seria o mais bonito de todos

Mas a minha aldeia
não pode ter um rio,
lá não brota água
porque as entranhas das penedias
estão secas

As pedras, essas sim,
é que parecem brotar do ventre da terra,
são tantas e tão claras,
que tornam o ambiente agreste
em alvura,
até as pessoas parecem ser de pedra

Mas o rio que eu imagino
e que corre pela  minha aldeia
é mesmo o mais belo de todos os rios,
porque é o rio que corre pela minha aldeia

sábado, 21 de dezembro de 2013

A guerra

Três badaladas e um trovão
soam na noite áspera do tempo,
três horas no extremo da Terra
onde crianças gritam por pão

A atmosfera limpa em sem vento
ouve o impacto da guerra
e há gente no chão a sangrar
porque não ouviram a sirene

As três badaladas e um trovão
não eram sinos, nem trovoadas,
nem neve, nem chuva, nem canção,
eram coisas que o homem fez
para destruir e estoirar

Há desespero, gritos e lágrimas,
mas em vão,
ninguém os ouve,
o som das três badaladas e um trovão
abafou o seu clamor
e eis que são levados
pela corrente
de lava
poderosa e quente
da guerra

Quem trouxe os guerreiros?
Raios os partam

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O meu arco-íris

São sete as cores do arco-íris
violeta, laranja e amarelo,
verde, azul, anil e vermelho,
pelo menos é o que se diz

Mas faltam cores ao meu arco-íris,
pois eu contei-as e não contei sete,
ou será que a culpa é da minha íris
que já não distingue o anil do violeta

Não te sumas ó meu arco celeste,
mantém-te aí colado ao céu
até que eu descubra para o que vieste

Mas tu sumiste e nada disseste
ó efémero arco da velha, não meu,
vai e não voltes, que nada de ti reste

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Foram-me ao ordenado e fiquei furioso

Bailarico, abanico
chafarica, Tia Anica,
deram-lhe um penico
e mijou fora da barrica
a mulher da fava rica

Torresmos, lesmas e azeite
para o jantar do Sr. Comendador
que encomendou a receita
na casa do Sr. Regedor
que a comeu assim já feita

Ordem, dor, ordenador,
alguém ordenou que o meu ordenado
fosse encolhido e esmurrado
para pagar o jantar ao Sr. Comendador

Dêem-me um pente e um alguidar,
uma trempe, uma trapaça e um tridente,
correntes e argolas para agarrar,
rebentem-lhe as ventas a quente
ao Sr. Comendador

Caiu o Produto Interno Bruto,
abaixo a Tia Anica,
o meu PIB também caiu,
aliás, cai sempre quando evacuo,
mas o meu é de pura tripa
para o Sr. Comendador

E o meu Produto Interno Líquido,
esse então é um achado,
seja branco, verde, ou tinto,
ou de outra cor,
ao normal, à pressão, ou de abafado,
para o Sr. Comendador

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Vem passar a tarde ao meu jardim

Vem passar a tarde ao meu jardim
lá cheira a alecrim
e já floresce o jasmim
e o rosmaninho

Sei que para ti o meu jardim
não passa de um capim
seco e mal cuidado,
mas, mesmo assim,
vem passar a tarde ao meu jardim
que lá cheira a alecrim
e podes beber da infusão
que acalma
e que dá de beber à alma,
vem passar a tarde ao meu jardim

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

A Terra e o Céu

Da Terra vê-se o Céu
é infinitamente grande e puro
e aparentemente tranquilo

De noite vemo-lo escuro
repleto de pontos de luz
quase todos eles cintilantes
até parece que piscam o olho
a algo que os seduz

De dia vemo-lo vazio e azul
cheio de luz

De noite e de dia
vê-se o Céu da Terra
E do Céu
alguém vê a Terra?

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Bom dia a todos

Os meu versos surgem-me. Não sou eu que os procuro. São momentos da minha existência. E se não os escrevo logo, perdem-se. Raramente corrijo os versos. Escrevo-os como me surgem. Talvez por isso, acho que são muito ingénuos.
Uma vez, durante um velório, escrevi isto:

Ensaio sobre a morte

Reparem
a morte é sempre a dos outros
nunca é a nossa
porque quando for a nossa
ela só é nossa
porque os que ficam vivos o dizem,
sendo que os vivos
continuam vivos,
não para sempre, é certo,
e os mortos
estão mortos para sempre,
o que também é certo.

E quando morremos
apenas alguns de nós têm tempo
de dizer "vou morrer"
e nunca alguém vai dizer
"morri"
pois são os que ficam vivos
e que nos olham mortos
que vão dizer que morremos.

Por isso
a morte é sempre a dos outros
e é apenas a morte
nada mais do que isso.

Mas,
porta-vozes dos entes celestiais
continuam a pregar na Terra
que todos os corpos têm alma
e que quando ela se desliga do corpo
fica a aguardar no etéreo
pelo dia do Juízo Final
enquanto o corpo fica arrumado
no cemitério.

E também dizem
que essas almas
serão recompensadas
no dia do Juízo Final
do bem que fizeram,
e não do mal,
enquanto transportaram
um corpo na Terra.

E é por isso
que quando a alma se desliga do corpo
os vivos acendem velas em seu redor
para apaziguar a dor
e neste ambiente de velório
encomendam a alma ao criador
implorando-lhe que a leve para o paraíso
sem passar pelo purgatório.

E aqueles porta-vozes garantem
que as almas que praticaram o bem
enquanto transportaram um corpo na Terra
vão mesmo para o paraíso sediado no além.

Por vezes pergunto-me
se não faltará o juízo
a estes seres terráqueos
que esperam ir viver para o paraíso
como batráqueos,
ou como qualquer outro animal sem dor,
ou será que no paraíso, no além,
somos todos feitos de vapor
(reconheço, porém,
que enquanto o homem é vivo,
precisa de um deus, seja ele qual for)

domingo, 15 de dezembro de 2013

Bom dia a todos

Quando tinha 13 anos escrevi isto:

Vida simples

Corro
pelos pinhais e matos
extasiado
respirando o ar puro
dos montes e vales

Canto
a melodia do vento
que abana o pinhal
embalando as aves
em gesto lento

Chamo
o que é bonito
rosas e rios
as aves e seus pios

Grito
em alta voz
para que me ouça
tudo o que é feroz
entre a natureza,
que não haja medo
de viver na beleza
dos montes e vales

Corro, canto,
chamo, grito
na natureza simples
das montanhas
de nada aflito
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Recentemente completei 58 anos e escrevi isto:

Faço 58

Faço hoje 58, se me contarem os anos,
e se me medirem por outros planos
contam 1,65 metros de altura e de peso 85 quilos
e, sendo da raça dos caucasianos,
tenho o rosto pálido e o peito com pelos

E ficam também a saber
que já vejo moscas volantes
que já sinto dores nas ancas
que já nada é como dantes
que já não acompanho as danças

E o que vier a seguir
melhor não será,
mas vou viver apenas o presente
e um dia de cada vez
e talvez assim aguente
esta minha lucidez
até que deixe de ser gente
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Descubram as diferenças.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Bom dia a todos.

Uma voz amiga aconselhou-me a criar um blogue para ocupar o meu tempo de recém-aposentado e para divulgar a minha poesia.
Aqui estou, pois, para cumprir esse desiderato e com o nome da aldeia onde nasci e onde vivi até ser adulto (Perulheira).

O primeiro poema que quero divulgar tem como título "no cais quando chove" e já circula em diversos blogues como sendo da autoria da Sr.ª Sophia de Melo Breyner Andresen.  Foi divulgado pelo meu colega e amigo Rogério Simões no seu blogue "Poemas de amor e dor" em 2004 e, talvez por ter alguma qualidade, alguém entendeu que seria da autoria da Sr.ª Sophia.

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No cais quando chove

Gosto de estar no cais quando chove,
a chuva transporta sabores 
e odores
que, quando misturados com o mar,
transformam a atmosfera
num ambiente de caldo
que me faz flutuar

Gosto de estar no cais quando chove
porque gostava de partir
para onde os sonhos são realidade
e é sempre melhor partir
quando chove

Gosto de estar no cais quando chove
porque o navio só parte
quando a chuva acaba
e assim encontro razão para não partir
porque só me apetece partir quando chove

Gosto de estar no cais quando chove
porque fico sempre
e talvez para sempre
e porque a realidade nunca é o que se sonha