segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Ele é um aselha

Ele abre os pacotes pelo fundo,
ele empurra as portas quando deve puxá-las,
ele corta-se nas latas de atum,
ele estraga os fechos das malas,
ele entala-se nas portas giratórias,
ele corta-se a fazer a barba,
ele está sempre a pôr nódoas,
ele detesta a gravata,
ele mastiga com a boca aberta,
ele não sabe fazer nada
com as mãos, ele não acerta
uma, perde-as todas,
ele é um verdadeiro aselha

Ele não enrosca os parafusos
a direito,
ele não sabe fazer furos
com brocas e berbequins,
ele não tem jeito
para consertar os estores,
ele dá golpes de rins
quando lhe dizem que é artolas,
ele não muda uma lâmpada,
tem medo de apanhar choques,
ele não sabe comandar o comando
da TV, da BOX, dos não me toques,
ele tem medo das tablets
e dos smartphones
de conduzir com a ponta dos dedos
na pantalha,
e dos iPod, e dos iPad
e de toda a parafernália
high-tech,
ele também não sabe pregar pregos
e foge a sete pés
das panelas de pressão
e das máquinas de lavar loiça e roupa
e do forno do fogão,
ele não conduz de marcha-atrás,
ele não sabe usar o macaco
que viaja sempre na parte de trás
do automóvel,
ele não anda de avião a jacto
e tem vertigens de arrepiar,
ele é um aselha, ele é um aselha,
ai dele se não fosse ela,
ela e elas

sábado, 27 de dezembro de 2014

As formigas

Vejo no chão um carreiro, um carreiro bem demarcado,
é um carreiro de formigas pretas, carregadas as que vão
para o formigueiro, leves as que vêm para o mercado
abastecer-se de tudo o que pode servir para o seu pão

São tantas, nunca as contei, é impossível contá-las, são
todas iguais e estão sempre numa correria, num frenesim,
e sempre a trabalhar, e não desertam e não se cansam,
e lá vai parte da seara para a sua toca de ocre carmesim

Parei e agarrei uma das formigas, que ia leve e ligeira,
ela esperneou, cheirou e acalmou, e com voz pousada
disse-me: larga-me ó monstro humano, não valho nada,
sou insecto e não tenho carne, sou uma formiga-obreira

Não como, não descanso, não durmo, ando no carreiro
todo o dia enquanto há calor, grão, palha e folhas frescas
para transportar para o meu clã, para o meu formigueiro,
e se paro sou excluída e entregue às garras das vespas

E não posso fugir, não me cresceram as asas e só sei
andar no carreiro que me marcou a formiga-rainha
a minha rainha a quem obedeço, eu e toda a sua grei,
formigas-obreiras, formigas-soldados, até a joaninha

Por isso, larga-me ó monstro humano cheio de pele
e de pêlos, larga-me, quase morro com o teu cheiro,
e eu larguei a formiga e também tomei o meu carreiro,
afinal, também sou uma formiga, uma formiga com fel

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

É Natal e confesso-me

Sim,
confesso que me limito a ser
um observador
de pessoas que vivem fora,
à margem, sem calor,
com rostos assustados
e que mostram a quem passa
sorrisos desdentados
que pedem, apenas, menos desgraça

Sim,
confesso que sou só um observador,
disfarço, observo quase sem olhar,
sim, disfarço,
finjo que não vejo e depois fico calado,
calado, mas quase a chorar,
e fico com a alma em cacos,
destruída,
mas não é com estes pedaços
da minha alma partida
que dou mais vida
aos rostos despedaçados

Sim,
confesso que sou um egoísta,
não passo frio, nem fome,
mas ao meu lado há gente
com frio e que não come,
são pessoas sem nada, indigentes,
pessoas com memórias e que têm nome,
mas só o dizem entre dentes:
- olá meu caro senhor, qual é a sua graça?
- chamam-me "o sem abrigo",
mas moro aqui,
mesmo no centro da praça

Sim,
não tenho frio, nem fome,
mas confesso que sou um egoísta,
sim, sou um egoísta
porque não chego a quem não come,
a quem tem frio,
sim, sou um egoísta,
sim, é Natal e confesso-me

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

O Inverno

Inverno, invernia,
esconde-se o melro no silvado
e foge o coelho para a toca,
a chuva bate forte no telhado
e alvoroça a galinha choca

Inverno, invernia,
fustigam os ventos nos vales
e abanam a azeitona madura,
cobrem-se as velhas com xailes
e o dia é quase noite escura

Inverno, invernia,
agasalham-se as ovelhas com lã
e muda-se a cama do seu curral,
enche-se a lagoa e cresce a grama
que alimenta o rebanho e o pardal

Inverno, invernia,
sofrem ainda mais os que estão sós
e os que se agarram à melancolia,
mas os rios chegam mais depressa à foz
e o castanheiro não verga com a ventania

Inverno, invernia,
e eu à lareira com os pés quentes
a ver o Verão nas achas a arder,
diz-me ó rouxinol o que sentes
quando não vês o sol a nascer

Inverno, invernia,
chove chuva pesada e fria,
ao menos que caísse neve
que nos daria mais alegria,
ao cair branquinha e leve

Inverno, invernia,
socorre-me ó deusa da aurora
que o meu coração quase hiberna,
manda o duro Inverno embora
e traz-me já a doce Primavera

E eis o inverno

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

O açúcar

O açúcar é doce e adoça,
e é tão bom o açúcar,
uma madalena, um queque, uma torta,
um jesuíta, um bolo de arroz, um folar,
um bom-bocado, uma tíbia, um caracol,
um pastel de nata, de feijão, de Tentúgal,
uma trouxa, um travesseiro, um ovo mole,
ai esta doçaria de Portugal,
e um bolo-rei, e um bolo-rainha,
e engole, e engole, e engole,
e sabe tão bem esta fatiazinha
de entremeio de ananás,
e sabe tão bem esta vianinha
barrada com compotas
de morango e de maracujá,
ai que sabe tão bem, ó vizinha,
e engordo, e engordas,
e engordamos a comer açúcar,
e ai a diabetes e as aortas
cheias de colesterol e de âmbar
e as tromboses e as enxaquecas
e a tensão alta e o mal-estar
e a corrida às panquecas
sem açúcar, só com erva-doce
e canela, e aos chás de cidreira
e de tília e de camomila,
mas agora venha uma barriga-de-freira
e um papo de anjo e um arroz-doce
e um leite-creme, e um suspiro,
ai que bom este açúcar com claras,
e venha também uma vichyssoise
para desenjoar,
e depois um palmier, e um duchaise
a transbordar de chantilly,
e um pão-de-ló e um pudim
na forma de alumínio,
e uma bavaroise de ananás,
e quase não sobra nada para mim,
e um doce de natas com palitos la reine,
e um molotov e umas farófias,
e filhoses e sonhos e coscorões
e rabanadas e bilharacos e tigeladas,
e tudo para enfardar aos encontrões,
e não te encolhas, e não te encolhas,
e, para terminar, um mil-folhas
e depois bebam muito chá de funcho,
ou de hortelã,
e respirem fundo, e respirem fundo,
senão ainda acordam com a cama
recheada de Encharcada do Convento
de Santa Clara,
mas não desistam, o açúcar é tão doce
e combina tão bem com tudo, com o quente,
com o frio, até com o agridoce,
ai é tão bom o açúcar, o mascavado bruto,
o refinado branco, granulado ou em pó,
e também o xarope para a tosse,
e o açúcar é tão bom e combina tão bem
com tudo, até com o champanhe,
com o cacau e com o conhaque,
e a tombar, e a cambalear,
lá vamos para a cama
dormir, talvez sonhar

Esperem,
não adormeçam já,
quero que fiquem ainda a saber
que, por causa do açúcar,
deste açúcar tão doce,
deste açúcar tão bom,
fiquei furioso, amargo,
pior que estragado,
quando me disseram
que quem corta e apanha
a cana,
a cana que dá o açúcar,
vive num barraco,
e é quase escravo,
ganha menos que um chavo,
e ainda paga a renda do barraco
à patroa,
que é rica, muito rica,
merda,
isto tem mesmo que ser assim?
merda,
revoltem-se ó escravos,
não sejam parvos,
matem a patroa,
dêem-lhe com força com a podoa
e vendam vocês a cana e o seu suco,
o suco do açúcar bruto
que me é servido refinado e branqueado

Pronto, já disse tudo,
podem adormecer

Boas festas

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

O som do tambor

Por favor,
não toquem mais nesse tambor,
já chega de som abafado,
já chega de dor,
e a marcha continua lenta
ao ritmo do tambor,
em silêncio, sem cor,
marcha lenta, não tem pressa
de chegar ao fim este cortejo
engalanado de cruzes e de rosas
desmaiadas em forma de coroas
e vem-me um desejo, um forte desejo
de colorir as rosas
e de começar a dançar e a cantar,
em vez de rezar

Não, não toquem mais nesse tambor
que dá a cadência da decadência,
do crepúsculo, do fim,
não, não toquem mais nesse tambor
com sons do pôr-do-sol
neste final do caminho

Não, não toquem mais nesse tambor,
quero ouvir um som mais alegre,
um som mais ritmado, que atenue a dor,
ouviste, ou não, ó tocador do tambor?,
mas onde estás tu? desapareceste?

O quê? ninguém tocou o tambor
neste cortejo!
mas de onde veio o som
que eu vim a ouvir e que agora
não ouço, nem vejo?
"já não estás bom",
diz-me uma voz real e acolhedora

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Auto-retrato

Não quero que se saiba
nem que se divulgue,
mas eu tenho uma papada
que me põe com uma cara
de bonacheirão quase rude,
só me falta a cabeça rapada
para parecer um almude
oco, sem nada

Papada mole
logo por baixo do queixo,
parece um fole,
e, por isso, sou feio,
mas não só por isso,
também não se nota
o meu pescoço
e sou de pouca altura
e um pouco grosso,
sim, pareço uma escultura
saída do período barroco

Contudo,
o pior é a minha papada,
e já fiz quase tudo
para a tirar, mas desisti,
e porque também sou peludo
não me apetece ficar pelado
para ir ao bisturi

Por isso,
vou deixar ficar a minha papada,
mesmo que pareça um ouriço,
quero-a apenas lapidada,
como um diamante,
quero-a a brilhar,
polida e flamejante,
e quem por mim passar
vai, decerto, exclamar
"mas que senhor elegante
ali vai"

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Diga-me quem souber

Diga-me quem souber
aonde irei ter
quando sentir que o chão
me está a fugir,
quando já não ouvir
o meu arfar, o meu coração,
quando escorregar para o abismo
do fim,
quando me enfiarem no buraco
do destino

Porventura,
ouvirei uma voz seca e cavernosa
a ordenar-me com cínica doçura
"vem, vou levar-te nesta carroça,
 fica quieto, a viagem será curta"

Porventura,
voarei nas asas de um querubim
depois de passar pela sepultura
apenas para tirar o bilhete de ida
para uma viagem celeste sem fim

Porventura,
serei separado em dois,
um ficará a chamejar,
o outro aguardará o depois,
o que vier a reencarnar

Porventura,
algo fará parar o meu coração
e nada a fazer, não tem cura,
e depois nada, e depois nada,
apenas um corpo, um corpo vão

Porventura... Porventura...
não, não adianto mais hipóteses,
não, não me consumo mais,
mas se alguém souber,
por favor, diga-me,
mas não me consumo mais

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Os moinhos de vento que não são de pedra

Os moinhos rodam e rodam
no alto dos montes,
rodam e rodam com a força
do vento a soprar,
mas estes moinhos não são de pedra,
nem têm pequenas janelas
nem mós a rodar, a rodar
e a esmagar o cereal da terra,
transformando-o em farinha e farelos

Sim,
estes moinhos são moinhos de vento,
mas não têm velas de pano
desfraldadas ao vento,
as velas destes moinhos são pás de aço,
de aço fino e leve, e giram e giram,
e são de tanto comprimento
que se não saíssem do transferidor e do compasso
nunca se mexeriam com a força do vento

Sim,
estes moinhos são moinhos de vento,
e também produzem energia,
não a que resulta da farinha alimento,
mas a que resulta das turbinas em movimento,
energia limpa, ainda bem

Mas estes moinhos de vento
não são como os meus velhos moinhos
redondos e de pedra com as velas
desfraldadas ao vento
e com o moleiro atento aos sons miudinhos
dos búzios a assobiarem e a anunciarem
a intensidade do vento

Sim,
são moinhos de vento modernos
que produzem energia limpa,
ainda bem que os temos,
mas não são os meus moinhos de vento,
não, com esta envergadura
não são os meus moinhos de vento,
chamem-lhes antes ventoinhas gigantes,
como reagiria a elas o Cavaleiro da Triste Figura
de Miguel de Cervantes?

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

A natureza do homem

O sexo e a natureza
são os motores do homem,
o sexo dá prazer e reproduz
e a natureza dá-lhe a luz,
o belo e o que ele bebe e come

Mas o homem quer mais,
ele trabalha para isso,
mas podia não fazer nada:
ele tem que comer,
a natureza o dá,
ele tem que beber,
a natureza o dá,
ele tem que se aquecer,
o natureza o faz,
ele tem que dormir,
o sono o satisfaz

E ele podia viver em paz,
mas não consegue,
porque quer sempre mais

Mas porque quer o homem
sempre mais?

Porque o homem discerne,
é inteligente,
e por isso é diferente,
se fosse animal só de sexo,
só de comer, só de beber,
só de dormir,
seria um animal menos complexo,
comeria e beberia apenas do que havia
e chegar-lhe-ia

Mas não chega,
o homem quer mais, sempre mais,
e, por isso, inventou deuses e demónios,
o bem, o mal e os demais,
as guerras e os ódios,
a escravatura e o trabalho,
as armas e os clãs,
as pátrias e os territórios,
a política e a esperança,
o dinheiro e a artimanha,
a inveja e a vingança,
e não lhe chega,
e não lhe chega tanta abastança

E depois morre
e julga que hiberna,
e o homem quer sempre mais,
vejam, ele até quer a vida eterna!
e o que ele faz,
e o que ele não faz,
para ganhar a vida eterna,
a vida eterna de sorriso,
de prazer, de felicidade,
nos jardins etéreos do paraíso,
e o que ele faz e não faz para isso!

Isto tudo
porque o homem discerne,
é inteligente,
mas, seguramente,
o homem não é mais do que um acidente
da natureza

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Cantiga a um passarinho que perdeu tudo

Que se passa ó passarinho
que estás a cantar
assim tão baixinho,
assim tão quietinho?

Perdi a voz,
perdi o meu ninho,
perdi o pio e a alegria,
perdi o calor
e o meu amor

Mas ó passarinho
arrebita,
o sol já nasceu e não faz frio,
arrebita,
afina o teu pio
e canta, e canta, e grita

Não consigo,
tiraram-me tudo, perdi tudo,
já não me sai a voz,
tiraram-me tudo,
deixa-me, quero ficar só

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

O meu nascimento visto por mim

Havia um lugar perdido num planalto calcário de uma serra situada entre o Tejo e o Lis que não tinha electricidade, nem estradas, só caminhos de terra, de lama e de cascalho. Quando chegou o saibro, foi um enorme progresso.
A Senhora Maria acordou naquela manhã de Outubro muito atarefada. Mas as dores de parto vieram mais cedo do que o previsto e a sua boca do corpo estava a dilatar de uma forma tão constante e dolorosa que só lhe restou deitar-se na varanda da sua casa e começar a gritar para alguém que passava na rua para chamar a Ti Pliquéria.
A Ti Pliquéria tinha bigode e era destemperada, mas o certo é que não havia criança nascida naquele lugar, e nasciam muitas, que não tivesse sido arrancada por ela às entranhas das mães. 
E a Ti Pliquéria veio a correr para socorrer a Senhora Maria. Entrou em sua casa e encheu logo um alguidar de barro com água quase a ferver que retirou da panela de ferro que estava sempre ao lume. De seguida, abriu uma arca da roupa e tirou algumas toalhas de linho e, com essas toalhas e com a água a ferver, prantou-se junto à cama onde jazia a Senhora Maria e começou a dar ordens:
- Abre as pernas.
- Faz força e respira fundo.
- Não te preocupes se te borras toda, eu limpo.
- Continua a fazer força, faz força, não te vás abaixo, não é agora ao quinto que vais desistir.
E a Ti Pliquéria já estava a ver o caso mal parado. 
- Alguém que chame a tua comadre Sapateira para me ajudar, mas não deixes de fazer força.
E os alguidares de água quente e as toalhas de linho andavam numa reviravolta que só visto.
- A lareira precisa de mais lenha. E o canto da lenha está vazio, porra. Faz força, porra.
Gritou a Ti Pliquéria.
De repente, é expulso do corpo da Senhora Maria um ser vivo todo ensanguentado e escamoso, tendo passado pelo canal uterino sem ter dado por isso, tal eram aquelas engrenagens.

E a Ti Pliquéria agarrou-me pelo pescoço
e virou-me de pernas para o ar
e gritou, e gritou,
"temos mais um moço
e ouçam, e ouçam, já começou a berrar"

E juntaram-se logo as avós

e outras velhas,
todas cobertas com negros xailes,
e acenderam velas ao Santo António,
ao São João, e a outros que tais,
e tinham água benta contra o demónio
e terços e crucifixos e santinhas
e rezaram e não pararam de se benzer
e de pedir às alminhas
para protegerem o novo ser
e que não lhe falte nadinha
desde o seu amanhecer
até ao seu anoitecer

E eu assim já nascido

ouvi clamores e orações
e esperança e júbilo
e promessas e aflições
e a Ti Pliquéria a gritar
"chamem depressa o Doutor Júlio"
-----------------------------------------------
Meus caros leitores, hoje faço anos.
Mais informo que suspendo aqui estes relatos de uma existência. São cento e cinquenta. Desfrutem. 
Voltarei com mais relatos, mas não sei quando.
Obrigado por me lerem e não se esqueçam de respirar.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Ó fada boa

Ajuda-me, ó fada boa,
quero saber se nasci
de cabeça,
ou virado do avesso,
ou se já vinha de cócoras,
como estou agora

Ajuda-me ó fada boa
a ter uma vida boa,
boa como o milho,
de que se faz a farinha,
de que se faz o pão,
de que se faz a açorda
quando o pão já tem gota

Ajuda-me ó fada boa
a ser ruim,
ruim como as cobras
que são tão mazinhas
que só rastejam,
coitadinhas

Ajuda-me ó fada boa
a cortar este nó górdio
que me agarra ao absurdo
do conteúdo deste mundo
envolto em vapores de ódio
e minado com bombas e mísseis
e canhões e guerreiros
e armas de destruição maciça,
visíveis e invisíveis,
que prometem grandes feitos
quando explodirem

Responde-me ó fada boa,
porque é que o homem
não é capaz
de viver em paz?

E a fada boa desapareceu
da vista da minha janela
e nem uma palavra me deu,
e eu que acredito em fadas,
sobretudo nas que poisam
na minha janela

Mas esta foi-se e nada me disse,
e agora, só com a minha janela,
vou continuar a ler o Camilo José Cela
que me explica que tudo isto é parvoíce
que não há fadas, nem paraíso,
que não valemos um chavelho,
que somos feitos para ser desfeitos,
e que acabamos tortos, sem juízo,
e com as tetas fora dos peitos

E pergunto eu:
será que o homem imundo
merece este mundo?

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Um serão

Sentei-me com amigos de longa data
à volta de uma mesa oferecida
e contámos histórias da vida passada,
da vida que ainda não foi esquecida

Após cada bocado de marmelada
e de requeijão suave e branquinho,
lembrámos pedaços do nosso caminho
e rimo-nos de nós e da vã saudade

E, por cada degustação do tinto,
vinha mais uma história de encantar
que era contada até ao último pingo

Antes deste belo serão terminar,
ainda elegemos o melhor vinho,
ganhou o mais robusto no paladar

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Conjugação do verbo amar

Amar,
o verbo do amor,
do amor amor,
do amor amigo,
do amor carinho,
do amor com dor,
do amor com sabor,
do amor fervor,
do amor paixão e fogo,
do amor platónico,
do amor místico, do amor só,
do amor impossível,
do amor carnal, em carnes vivas,
do amor à primeira vista,
do amor a sangrar,
do amor quase cansado,
do amor reproduzido,
do amor inconsolado,
do amor partido,
do amor morto

"Mas não é assim que se conjuga o verbo amar",
dizem-me os eruditos da gramática
e os peritos em sinalagmática,
para os primeiros conjuga-se "eu amo-te",
para os segundos  "eu amo-te se tu me amares"

Mas o verbo amar não tem gramática,
nem sinalagmática,
o verbo amar só tem amor,
e se o conjugarem como diz a gramática
digam apenas "eu amo",
e amem, e amem, e amem,
não odeiem

Amém

domingo, 5 de outubro de 2014

Ao Ary dos Santos

Espalhaste as amarras
e cuspiste fogo dos teus olhos
flamejantes,
foste poeta lume e de farras,
poeta de versos aos molhos
com amantes

Foste poeta comprometido
com a foice e o martelo
e com palavras de ferro fundido
forjadas na forja do ferreiro
mais feérico

Foste poeta arrepio,
poeta gordo de poesia,
poeta sufoco,
poeta com o cio,
poeta fogo

Não foste poeta castrado,
nem poeta impotente,
mas levou-te a morte apressada
que bebeu o teu corpo farto
de ambrósia ardente

Morreste poeta feroz,
mas continuo a ouvir a tua voz,
voz destilada, voz rouca de riso,
ó Ary, envia-me a tua morada
do paraíso

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Sirvam-me

Se tenho sede, bebo água,
água pura das fontes e minas
que me chega aqui a casa
por canais e serpentinas,
e chega cá e não vasa,
sirvam-me água cristalina

Se tenho fome, como,
como o que compro
e não o que semeio,
nem o que cultivo,
sirvam-me o centeio,
sirvam-me o trigo

Se tenho frio, protejo-me
com tecidos que não teço,
com sapatos que não coso,
com lenha que não corto,
não passo de um ocioso,
mas sirvam-me o conforto

Se estou doente, vou ao médico
e digo-lhe "dói-me aqui e aqui
e quero que me dê um remédio
que me cure, quero o meu xixi
clarinho e o meu coração a bater
sempre, sirva-me, não quero morrer"

Mas afinal não faço nada,
nem a bota, nem a perdigota,
e já me disseram pela calada
que quando bater a bota
não irei pela minha mão,
levam-me, melhor, levar-me-ão

Pois, pois, não vou, levar-me-ão,
mas, então, os que me derem a mão
sirvam-me um humilde esquife de papelão
e vistam-me apenas um calção,
ou levem-me antes todo descoberto,
assim mesmo, todo descoberto,
para não sentir tanto o aperto

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Os guarda-chuvas de Hong Kong

Aparece um, dois, três, dezenas,
aparecem mais,
em pouco tempo já são centenas,
milhares,
são multidão,
gritam, pulam, cantam, choram,
dançam, são figurantes de cenas
de histeria colectiva,
e para onde olha um, olham
todos os outros
e acabam por ter todos a mesma objectiva,
pode ser um jogo, uma cerimónia, uma manifestação,
um fenómeno natural, ou algo paranormal
como um milagre, uma visão ou uma aparição

E da multidão
sai uma força contagiante
de devoção, de emoção, de comoção,
que não deve ser contrariada,
mesmo quando essa força é cega, sem razão,
mesmo quando essa força suporta facínoras,
e um só com razão no meio dessa multidão
corre o risco de ser linchado
se não seguir também a multidão

E todos nós somos multidão,
raramente dizemos não
a quem nos domina, a quem nos controla,
a quem organiza a multidão,
e se alguém diz não, é tresmalhado, só,
mas quando a multidão
diz, em uníssono, não,
quando toda ela é livre, rebelde,
surge logo o controlador com ar sério
e põe a trabalhar os canhões de água, o cassetete
e as bombas de gás lacrimogéneo

E a multidão foge, dispersa,
não luta,
e dos milhares, resta cada um,
e nada muda

Mas olhem hoje para Hong Kong,
a multidão de Hong Kong
que não desiste da luta,
é uma multidão de juventude
que se abriga da chuva
com guarda-chuvas,
querem apenas democracia
em Hong Kong e, também, na China

Viver com a democracia,
esse valor do chamado Ocidente,
é, apesar dos defeitos, uma alegria,
eu gosto dela, eu vivo com ela,
que não desista a juventude
de Hong Kong e da China,
não façam como os dirigentes
democratas do Ocidente
que visitam o poder ditador da China
só com interesse nos negócios
e esquecem a dor e a chacina
dos que aí lutam pela democracia

Jovens de Hong Kong,
não fechem os guarda-chuvas,
chova ou faça sol

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Nas faldas da minha serra

Nas faldas da minha serra,
aqui onde eu sou,
cresce o alecrim, o orégão, o rosmaninho,
o tojo, a moita, o carrasco e o pinho,
e respira-se maresia
quando o vento vem do mar,
do mar que ainda está longe,
mas que já se anuncia
mesmo no fim do horizonte

Nas faldas da minha serra,
cobertas pelo intenso garrigue
e onde a cigarra, sempre aflita,
berra e berra e berra,
viveram os meus antepassados
e aí ficaram acomodados,
para sempre,
em silêncio e em paz

Nas faldas da minha serra
passeio eu agora
na cadência do tempo
e dos sons do horizonte,
e calcorreio os caminhos
que serpenteiam o monte
entre fragas e espinhos,
e pergunto-me se o ar
que agora respiro
não será o mesmo ar
que respirava em menino,
e passeio e anseio
e pergunto-me se o meu destino
não estará traçado,
se não ficarei também
para sempre acomodado
em algum cerrado
ao pé da minha serra,
a leve e ondulada Serra d'Aire

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

A motosserra

A motosserra começa a serrar de madrugada
e serra e serra, sempre a gemer,
serra na encosta da serra e serra a árvore
quando lhe afinca os dentes de aço
acorrentados numa corrente que desanda
com força e sem piedade e corta
e corta o tronco da árvore e depois os ramos
e só deixa o cepo e as raízes fundas enterradas
na terra que irão germinar outra vez,
talvez

E a árvore sangra e sangra
e chora e desiste e cai catrapuz,
cai direita com estrondo
sem torcer o tronco
e a motosserra sempre a serrar
na encosta da serra
e ouve-se o seu barulho teimoso
e não desarma e faz faíscas
e serra e serra o osso
na encosta da serra

A motosserra serra e serra
e quem a comanda é o serrador
ou o lenhador ou o rachador
e agarra-a com ambas as mãos
e aguenta os seus coices
e os seus engasganços
e absorve a serradura
que lhe entra pelas ventas
e pela dentadura

E o barulho da motosserra
continuou o dia todo
na encosta da serra
e só parou e só parou
quando a noite começou,
e quando me deitei,
já noite adentro,
ainda ouvia o som da motosserra

Como terá adormecido
o serrador?

sábado, 27 de setembro de 2014

Hoje vou cavar

Hoje vou cavar,
uma cova aqui, outra acolá,
na cadência da enxada,
a de pontas, não a rasa

Hoje vou cavar
esta terra escura
esta terra de falgar,
esta terra dura
se a seca durar

Vou cavar hoje
porque já chove,
cavo, faço covas,
mas algo se move,
são as minhocas

Cavo e cavo e cavo,
e acima e abaixo
e já estou a dar cabo
do cabo da enxada,
quero antes um sacho

E o sacho também pesa,
ou está mal encavado,
vou mas é cavar daqui,
afinal sou da realeza,
alguém que cave por mim

Sim, porque eu sou Rei,
o rei galo entre os galos,
e um Rei tem que reinar,
não tem que ter calos
nem canetas para cavar

Só se tiver que dar à sola
do reino, do povo, do clero,
e se tiver, deixo o sacho e a sachola,
ó pernas para que vos quero,
cava ó Rei daqui para fora

E então diz a Rainha irada,
"para que queres a enxada?
toca a cavar, toca a cavar,
quero nabos e couve lombarda
para o almoço e para o jantar"

Coitado deste humilde Rei,
o Vitório Rei, o sorna,
para não ter que ganhar a jorna
a cavar com a enxada ou com o sacho,
tem que cavar daqui para fora

E ninguém o compreende,
é que só tem canetas para escrever
e calos no dedo onde prende
a caneta para escrever

Vá lá, deixem-se de tretas,
não obriguem o Vitório Rei a cavar,
falta-lhe a vontade de suar
e a força nas canetas

Vá lá, digam à Rainha
para deixar o Rei descansado,
até porque hoje é sábado

terça-feira, 23 de setembro de 2014

A queda de uma folha

Olá,
sou uma folha verde muito gira,
sou limbo, pecíolo e bainha,
sou aérea e simples no corte,
tenho forma ovada e sou fendida
no recorte

São várias as minhas nervuras,
sou palminérvia,
mas não sofro dos nervos,
nem de tonturas,
sou abstémia,
só bebo da seiva bruta
que, com a minha fotossíntese,
se transforma em seiva elaborada
e alimenta a minha árvore,
enfim, sou uma folha exemplar

Mas recebi ordem de expulsão,
sim, vou ser expulsa,
sem nenhuma razão,
sem nenhuma culpa
formada,
e até já estou a mudar de cor,
estou a ficar amarelada,
estou a ficar seca de dor

E a minha bainha
já quase não se agarra
ao caule da minha árvore,
estou a ficar muito fraquinha,
acho que vou cair,
e vem aí um vendaval,
ai que vou cair,
já quase não sinto o caule
que me segura à minha árvore,
ai que vou cair,
quem me agarra? quem me agarra?
ai que caio, ai que caio,
e caí,
caí no chão, caí na lama,
caí e já não me sinto,
acho que morri
------------------------------
Começa hoje o Outono de 2014

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Aquela nuvem escura

Aquela nuvem escura
seguiu-me, sempre ameaçadora,
mas em silêncio,
e despejou-me a sua fúria,
assim, de repente,
como uma esponja com o cio,
e apanhou-me de frente,
e vi-me enrolado num rodopio
de vento e de chuva grossa,
bolas de gelo esbranquiçado,
uma terrível escardoça,
um dilúvio de balas de pedraço
que metralhavam a calçada
num ritmado estardalhaço

E o meu caminho
tornou-se numa torrente
de lodo barrento
como um rio revolto,
sem margens, bruto, violento,
"credo, estará o diabo solto?"
gritei eu ao vento

E aquela nuvem escura
não parou de ralhar,
de espirrar, de encharcar,
de estilhaçar, de enxurrar

E depois parou,
nem mais um rugido,
e foi-se embora,
tão naturalmente como chegou,
o céu ficou varrido,
mas o chão não,
era preciso varrê-lo

E a revolta dos elementos
faz-nos sentir minúsculos,
pequenos,
pouco mais do que moluscos
agarrados aos penedos
batidos pelo mar,
e a revolta dos elementos
deixa-nos a gritar,
já chega, já chega, parem,
porque se não pararem
vamos parar ao mar

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Envelhecer

Anda tudo a envelhecer,
envelheces tu, envelheço eu,
envelhece também o céu
e quem acabou de nascer

- É pá, faz tempo que não te via,
estás praticamente na mesma.
- Na mesma uma ova, não vês
que envelheci e que cheiro a azia?

Anda tudo a envelhecer,
o gato, o cão e a catatua,
envelhece o Sol e o amanhecer
e as árvores da minha rua

Anda tudo a envelhecer,
envelhece o velho e a velha
que já estão fartos de envelhecer,
envelhece o zângão e a abelha

Envelhece a alma e a idade,
a cidade e a rotina,
envelhece o querer e o sorrir,
só não envelhece o que é nada,
o que não nasce, o que não germina,
o que falha a oportunidade de existir

Anda tudo a envelhecer,
mesmo quem rejuvenesce
à custa do bem parecer,
mesmo quem cresce
e julga que não envelhece
enquanto cresce

Ouçam-me todos,
não parem de envelhecer,
não parem, porque parar é morrer
isso mesmo, seus tolos,
parar de envelhecer
é morrer

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Naufrágio

Deixam-se embarcar
amontoados,
com sede, com fome,
e já enjoados,
já com cheiro a morte

E flutuam,
já em alto-mar,
na piroga da esperança,
será que vamos chegar
às costas da bonança?

E continuam embarcados
a flutuar em alto-mar,
desamparados,
os corações a espumar
e a piroga a afundar

E continuam a flutuar
em alto-mar,
mas agora afogados,
a piroga não era para navegar,
era só para iludir os desgraçados

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

O Marinho e Pinto e a Genoveva

Para aonde irá a Genoveva
assim vestida toda airosa
com a sua alcofa cor de rosa
e o que será que ela leva?

Para aonde irá aquele Pinto
com uma alcofa de arminho
e um fato de azul marinho
e gravata com tons de tinto?

Vai a Genoveva para a Suíça
ter com o seu homem trolha,
leva na alcofa broa e chouriça
e uma réstia de alhos e cebola

Vai o Pinto marinho para Bruxelas,
leva na alcofa votos e votos em vão,
e vaidade, e demagogia e balelas,
não disfarça, é um deputado da Nação

Foi-se a Genoveva e não voltou,
ficou como "femme de ménage"
e tanto limpou e tão pouco ganhou
que encheu a sua alcofa de "rage"

Mas voltou o Pinto marinho,
que não quer ser tão bem pago
como um europeu deputado
e ei-lo de novo aqui pobrezinho

E agora diz que é um rei mago
e que voltou para nos governar,
mas se já nos governa tanto gado,
para quê outro, um pinto do mar?

Vamos é pedir à Genoveva
a sua esfregada esfregona
e vamos esfregar a tromba
da bicharada que nos governa

Para aprenderem a não mentir,
para aprenderem a não roubar,
para aprenderem a não matar
a nossa esperança no porvir

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Fui aduaneiro

A fronteira é uma linha imaginária
que demarca a língua, a tribo, a nação,
os países, os estados, os clãs, a pátria,
os costumes e, por vezes, a religião

A fronteira é ruptura,
e atravessar uma fronteira
é, por vezes, uma aventura,
e eu fui aduaneiro
e controlava a fronteira,
não toda, apenas um dos seus lados,
porque o outro lado era controlado
por outro aduaneiro
que não estava do meu lado,
porque estava do seu lado

E assim é,
de um lado da fronteira está um aduaneiro,
do outro lado está outro aduaneiro,
mas afinal qual é o lado certo?
o direito, o esquerdo,
ou o que não está à vista?
"para mim, qualquer lado é o certo",
conclui o contrabandista

E eu fui aduaneiro
e nunca percebi as fronteiras,
do outro lado falam diferente,
têm mais dinheiro, têm mais gente,
têm outras maneiras,
mas no meu lado são estrangeiros
e eu no lado deles estrangeiro sou

E eu fui aduaneiro
e nunca percebi as fronteiras,
olhem os peixes, as aves,
os ratos, os cães vadios, as toupeiras,
andam sempre em viagem
e a cruzar fronteiras,
mas nunca mostram o passaporte,
nem a bagagem,
nem o seu meio de transporte

- Alguma coisa a declarar?
- Sim, eu, que sou uma coisa.
- Está bem, pode passar,
mas para a próxima vou desconfiar

E eu fui aduaneiro
e gostei,
gostei muito,
mas nunca percebi as fronteiras

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Chuva

Hoje está a chover,
está a chover e bem,
caem gotas de chuva,
gotas de água de beber
e de molhar quem
anda a apanhar a uva
já temperada,
já madura

Hoje está a chover
e o dom plúvio
não desarma,
provoca o dilúvio
e não deixa a Santa Clara
abrir o céu e mostrar
o que está por cima do plúvio,
a luz do sol a brilhar

Mas a chuva também aconchega,
e continua a chover,
desde que eu não molhe a cabeça
pode continuar a chover,
e continua a chover

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Um poema de ideias feitas

Um poema feito
de ideias feitas
não pode dizer nada de novo,
não pode dizer que um parapeito
deve ser parte de uma janela
sempre aberta para a rua,
um poema de ideias feitas
diz que essa janela é para estar fechada
e que só se vê através dela uma parede nua
quando está aberta

Um poema feito
de ideias feitas
não pode dizer "abram a janela
e vejam através dela
as maravilhas perfeitas,
o sol, a noite, a chuva, o homem,
e sintam o fulgor da primavera em flor
e o intenso aroma do pólen,
o intenso aroma do amor"

Um poema feito
de ideias feitas
diz apenas "fechem a janela
e quebrem-lhe o parapeito"

Um poema feito
de ideias feitas
não pode dizer nada de novo,
não pode explicar como pode um ovo
dar uma estrela,
só pode dizer "um ovo estrelado
sai de uma frigideira com óleo a ferver"

Um poema feito
de ideias feitas
só pode dizer que um ovo
não é redondo, é oval,
mas um ovo é fenomenal,
foi desenhado sem esquinas, sem arestas
para daí nascer uma vida,
para daí nascerem estrelas,
e um ovo estrelado
é estrelado, não por ser estrela,
mas porque não foi chocado
para dar uma estrela

Um poema feito de ideias feitas
não pode dizer que no mar
há versos imersos
que se vestem de claras em castelo
quando são dispersos
pelas ondas de espuma
e que são inspirados
por quem procura a poesia
na bruma,
na maresia

Um poema feito
de ideias feitas
só pode dizer que existe o mar
porque está lá,
ponto

E o poeta que não é livre
só pode escrever poemas de ideias feitas,
livrem-nos disso, livrem-nos disso,
e que ninguém tire
ou compre a imaginação dos poetas,
e que haja suspeitas
quando um poema inteiro
é  só feito de ideias feitas,
quem o escreveu pode estar prisioneiro

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Fui ver os aviões

O avião levanta voo contra o vento,
e aí vai o aviador e o avião
e ainda quem se aviou a tempo
de o apanhar a aviar no chão

E eu, ao vê-lo levantar, estarreço,
aquilo tudo no ar! não pode ser,
e foi apenas um jacto, um arremesso,
que o arremessou até desaparecer

E vejo outro avião a voar baixinho,
e aterra, e oscila, e vai parar,
e parou, parou suave e direitinho

Vejo aviões, mas assim não vou voar,
quero antes voar como um passarinho,
livre, a cantar e sem sinal de radar

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Não me mostrem mais sangue

A dor não tem cor,
é incolor a dor, mas a dor
dói, sufoca, e se a dor
não adormece,
mói, arde, é ardor,
enlouquece

A dor não tem cor,
mas tem o sangue
que é todo da mesma cor,
e quando jorra
não muda de cor,
seja o sangue da derrota,
o sangue do perdedor,
seja o sangue da vitória,
o sangue do herói,
mas ver sangue derramado dói,
dói muito, dói sempre,
mesmo se for sangue de herói,
porque o sangue tem cor,
é vermelho ardente

Por isso,
não me mostrem mais sangue
derramado por corpos caídos,
estropiados, desmembrados,
mortos, inválidos, vencidos,
não me mostrem mais sangue
derramado em vão,
definitivamente,
não quero ver mais o chão
molhado de vermelho ardente,
por favor, não me mostrem mais sangue
assim, derramado e ainda quente

sábado, 30 de agosto de 2014

Trinta e três anos

Estava tão longe daqui
quando chamaste por mim,
andava nas nuvens aluado
montado num atrelado
puxado por um arlequim

Estava tão longe daqui
quando me disseste
que ainda gostavas de mim,
que ainda não me perdeste
e que vai ser assim até ao fim

Estava tão longe daqui
quando me anunciaste
que estamos assim e aqui
há 33 anos neste cais
e que vai ser assim até ao fim

Estava tão longe daqui
quando chamaste por mim
e me recordaste tanta coisa,
e eu nem sequer me lembrei
de te oferecer uma rosa,
desculpa, sou assim

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

O fim do mundo

Naquela manhã
as árvores da alameda
não davam sombra
e as pessoas caminhavam
e a sua própria sombra
também não aparecia,
e já fazia muito sol,
e ainda não era meio-dia,
e já ninguém aguentava o sol,
mas onde é que estaria
a sombra?
ninguém sabia

Começou o pânico,
não havia sombra,
nada fazia sombra ao sol,
e o sol aquecia, aquecia,
e ainda não era meio-dia,
e já estava tudo a ficar mole,
quase em papa,
mas onde é que estava
a sombra?
nem dentro de casa

E veio uma informação da NASA,
o Sol vai engolir a Terra,
dentro de dias, talvez semanas,
ninguém se safa

O Homem
começou a rezar aos seus deuses,
os animais, os outros, começaram a morrer
mais cedo,
as plantas começaram a secar e a arder,
os rios e os oceanos minguaram de sede,
o Sol começava a ficar mais perto,
meu Deus, é o fim do mundo,
deste mundo já quase deserto

Foi então que o Sol
enviou uma comunicação à Terra
que dizia
"ou o Homem acaba com a guerra,
ou eu acabo com o Homem"
e, mesmo com esta ameaça de morte certa,
o Homem só assinou acordos
temporários de cessar fogo
para se poderem contar os mortos,
para se poderem reconstruir as casas,
e o Homem anunciou ao Sol
que não haveria mais guerra na Terra,
que haveria paz, paz, paz, só paz,
mas o Sol não acreditou no Homem
e, zás-catrás,
engoliu a Terra

Bem feito!,
os terráqueos desapareceram,
bem feito!,
só estavam a estorvar,
disseram os habitantes de Marte
e da Europa,
(sim da Europa, uma das luas de Júpiter),
ao lerem o boletim meteorológico
daquele dia,
do dia em que o Sol engoliu a Terra

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Uma história

Os netinhos e as netinhas
estavam à volta do avô
a ouvir contos e adivinhas
enquanto a avó limpava o pó
da cantareira e das cantarinhas

Ó avô, conta-nos outra história,
queremos continuar a ouvir-te,
vá lá, ainda tens boa memória,
nós queremos saber mais de ti,
queremos ouvir a tua sabedoria

Era uma vez uma bruxa muito má
que tinha como sua única vizinha
uma fada muito boa, muito amada,
e que repartia tudo o que tinha
com quem batia à porta da sua casa

E um dia a bruxa muito má
bateu à porta da fada boa
e pediu-lhe torradas e chá
e queijo e presunto e broa,
e começou logo a praguejar

Ó Avô, não nos contes mais
histórias de bruxas e de fadas,
e de castelos com fantasmas,
e de donzelas sós e encantadas,
e de milagres e outras que tais

Ó Avô, conta-nos antes a história
dos senhores ricos e banqueiros,
já disseste que são a nossa escória,
que roubam os nossos mealheiros,
que gastam o nosso dinheiro lá fora

Era uma vez um Banco bom
e um Banco mau, criados na hora,
(e o Avô desmaiou e acabou
aqui esta história)

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

O deus Shiva

Vejam só o que me aconteceu,
encontrei uma estátua do deus Shiva
enterrada nos lodos do rio Trancão,
mesmo junto à sua foz, mesmo ali
a olhar para mim, quase viva

E logo a estátua do deus Shiva,
ela é de pedra, é pesada, é dura,
tem quatro quilos e trezentos gramas
e palmo e meio de altura,
e não lhe falta quase nada
(pelas minhas contas,
só lhe falta a cabeça da serpente naja)

E é o deus Shiva,
o deus Hindu da renovação da vida,
da renovação para melhor,
presumo eu, dado que tem fama
de ser mau, de ser destruidor
(ele segura numa mão um tridente
e noutra um cântaro,
mas ainda tem mais duas mãos,
uma acaricia o joelho e a outra acena)

E eu já estou a imaginar a foz do Trancão
como local de peregrinação
para os hindus,
já estou a ver aí um festival Kumbh Mela,
como em Allahabad,
onde se juntam aqueles homens todos nus
e barbudos, encharcados de lama
e de cores garridas, são os gurus hindus
que encontram a sua purificação e salvação
ao banharem-se nas águas do rio Ganges
(é o maior festival religioso do mundo
que chega a juntar mais de trinta milhões de almas,
todas a mostrar aos seus deuses e deusas
que são puras e que merecem viver eternamente
felizes cá na Terra e sempre com figura de gente)

E eu trouxe a estátua do deus Shiva
para minha casa
e lembrei-me da Nossa Senhora Aparecida,
padroeira do Brasil,
cuja estátua também foi encontrada na borda
de um rio, na borda do rio Paraíba,
mas era uma simples estátua de terracota
e muita pequena, muito leve e sem cabeça
(há quem diga que é tudo mentira),
enquanto a minha estátua do deus Shiva
é pesada, é de pedra rija,
tem dois pés, duas pernas, quatro mãos e uma cabeça
e não tem nada de virgem, nem de Maria

E eu trouxe a estátua do deus Shiva
para minha casa
e lavei-a e perfumei-a,
e agora vou protegê-la
da minha tribo iconoclasta
Dizem que ela é feia,
muito feia,
mas ela não é feia, ela é muito bela,
e não é de fantasia, nem falsa,
porque é pesada, porque é de pedra,
e se alguém se joelha
junto duma estátua
e implora, e chora, e reza,
é porque tem fé e confiança nela,
mas uma estátua é sempre uma estátua,
apenas isso, uma estátua

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O labirinto e a Rosa dos Ventos

Estou a ficar desorientado, sem norte,
já não me lembro por onde sai o caminho
que me leva daqui para fora,
para fora deste labirinto,
não quero ficar aqui dentro, à nora,
sem demora, quero ir embora,
quero seguir o meu destino

Quero libertar-me deste labirinto,
quero descobrir o caminho
que me leve para o infinitamente
grande, ou para o infinitamente pequeno,
ou para as latitudes de ar húmido e quente,
ou para as alturas que se debruçam abruptas
em abismos abissais impenetráveis,
pode ser um caminho que vá sempre em frente,
ou um caminho que tenha curvas,
ou que percorra desertos com miragens,
ou que me faça mergulhar em águas turvas,
ou em águas turbulentas e cristalinas,
não me interessa, quero é descobrir o caminho
que me tire desta confusão, destas esquinas
labirínticas, sem contornos, sem perspectivas

E um caminho é sempre um caminho,
está traçado, já por lá passou alguém,
tem valetas, tem geometria, tem um destino,
que pode ser o seu fim, ou ir mais além,
até se cruzar com outros caminhos

Mas não me interessa
para aonde me levam os caminhos,
quero é saber onde começa
o caminho que sai deste labirinto,
porque tenho pressa de sair,
tenho pressa de fugir,
porque já sinto um cheiro a réptil,
ou um cheiro a um qualquer sauro,
será que me soltaram o Minotauro?

- Sim, soltaram-te o Minotauro,
e as suas garras são poderosas,
foge delas, corre, vai pela esquerda,
corre mais, agora vira à direita,
cuidado com essas poças
de lama e de merda,
não toques na parede desfeita,
corre ainda mais, vai sempre em frente,
agora desce esses degraus,
cuidado, não escorregues,
não olhes para os vãos
e agarra-te bem ao corrimão,
ao fundo do corredor vê se consegues
subir a escada e abrir o alçapão,
isso, conseguiste, não esmoreças,
segue sempre em frente, não corras,
cuidado, não te apoies nas maçanetas,
algumas delas abrem as masmorras,
agora vira à direita, outra vez à direita,
agora já à esquerda,
pára, enganaste-te, volta atrás
e vira logo à direita que era
a tua esquerda,
isso, agora calma, caminha mais devagar,
não, não vás por essa porta aberta,
segue o corredor,
ó, apagou-se a luz,
pára, espera,
estás a ouvir uma voz, um clamor?
não lhe ligues, é um embuste,
mas estás ainda no túnel
e sem luz, sentes calor?
claro que sentes calor,
experimenta seguir em linha recta,
não, não, assim não, estás a ir aos tombos,
endireita-te, cuidado com a cabeça,
já estás perto da saída,
caíste, levanta-te, endireita os ombros,
foi só uma pequena caída,
mais uns passos, mais uns passos,
já não há escombros,
já vês a saída? -

Sim, já vejo uma luz ao fundo,
vou correr, vou correr,
vejo uma saída, vejo uma saída, vejo uma saída,
não vou ainda morrer, não vou ainda morrer,
viva a vida, viva a vida,
saí do labirinto, saí do labirinto,
mas quem me pôs lá?
mas quem me tirou de lá?

Não interessa, não interessa,
já estou cá fora,
saí do labirinto, saí do labirinto,
agora tomo este caminho,
vou-me embora, vou-me embora
luz, luz, luz, luz, tenho a luz do sol,
vou-me já por este caminho
- vai que vais bem, esse caminho leva-te para o norte -,
diz-me a Rosa dos Ventos,
e vou mesmo, assim já não voltarei a perder o norte,
e no norte, mesmo lá no norte,
encontrarei a terra dos silêncios
e a vastidão dos gelos eternos
que congelam tudo, tudo, até a morte

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Ao António Variações

Ele era um Anjo
e não sabia que o era,
mas ele vestia de branco
e de primavera

Ele era trovador
e sabia que o era,
cantou-nos a sua dor
e a sua quimera

Ele era poeta
e sabia que o era,
leu-nos a sua alma
e o seu corpo de sal

Ele queria viver,
não importava até quando,
mas ele era um Anjo
e não tinha que morrer

Mas morreu, e morreu de morte traiçoeira
que espreita os corpos que ardem de desejo,
vai-te ó morte cínica, vai-te ó morte matreira,
não maces mais os amantes com o teu bocejo

E ele morreu
e de nada lhe valeu
o seu Anjo da Guarda,
morreu ele,
mas não morreu a sua palavra,
mas não morreu a sua canção,
essas nunca morrerão

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Bom dia

Bom dia, bom dia,
porque é outro dia,
e é outro dia
porque é um dia de cada vez
até ao final de cada mês,
até ao final de cada ano,
até quando for a nossa vez
de acabar de vez

Bom dia, bom dia,
porque é dia outra vez
e porque ninguém
deseja um mau dia
a ninguém,
mas há sempre alguém
que no final de cada dia
diz "mas que merda de dia"

Bom dia, bom dia,
e viva a monotonia,
bom dia
e vou encher a almotolia
de azeite que comprei no Dia,
e viva a monotonia
dos segundos, dos minutos,
das horas, dos dias, dos meses,
dos anos a passarem em segundos

Bom dia, bom dia,
e amanhã é outro dia,
e vou já encher a pia
com água fria
para pôr as trusses na lixívia

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Um simples relato de Verão

Apanhei um escaldão,
um escaldão muito localizado,
um escaldão no sítio das costas
aonde não chega a minha mão
esquerda e a minha mão do outro lado,
o direito, afinal, o meu creme de protecção
da radiação solar UVA
não é contrafacção,
não é feito de água da chuva
misturado com cinza e sabão,
pois, protegeu toda a juba
das minhas costas aonde chega a minha mão

Mas, nas minhas costas
aonde não chegam as minhas mãos,
uma de cada vez, ou justapostas,
apanhei um escaldão e fiquei encarnado
como a cor da crosta das lagostas
quando são cozidas vivas no tacho

É verdade que sempre tive as costas largas,
mas não chegar a toda as partes
das minhas costas cheias de sardas
com a palma das minhas mãos é castigo,
é um sinal de limitação incompreensível,
só os outros podem tocar nesse sítio,
e eu não lhe chego, está escondido,
bem atrás das minhas costas, inatingível

Apanhei um escaldão e fiquei  a escaldar,
o que me vale são os banhos de água fria
na banheira, e não no mar,
porque assim escaldado e com tanto arrepio,
se fosse mergulhar na água do mar
ficava a praia vazia
de tanto gritar

Escaldado, água fria, escaldão,
vermelhão,
a culpa é do Verão,
mas se eu chegasse com a minha mão
a toda a área das minhas costas
não culparia ninguém do meu escaldão,
para a próxima dou as minhas costas
a quem me quiser dar a mão
para aí espalhar o meu creme de protecção,
mas espero que me passe o escaldão
com este simples relato de Verão

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Com que então uma pipa de massa

O Durão Barroso está a preparar-se
para ter acesso à pipa de massa
doada pela sua Comissão a Portugal,
são 26 mil milhões,
vai ser um regabofe, um festival,
para o Durão e seus durões

Dêem-lhe antes uma pipa de vinho
azedo, daquele que sabe a vinagre,
e púcaros cheios de resina de pinho
que, nas gargantas de quem é alarve,
sabe a doce de mel de rosmaninho

Portugueses a passar fome,
desempregados, desesperados,
espoliados, emigrados sem nome,
sacrificados,
tudo para reajustar as contas públicas,
porque se gasta muito com os reformados,
com a saúde e com a educação gratuitas,
vão bardamerda, seus desalmados

Que venha, pois, a pipa da massaroca,
vai parar toda às mão da gente benzoca,
que só se sabe governar à custa do suor
dos trabalhadores, gente honesta e séria
que continua a suportar os salários de miséria
e os impostos sobre o trabalho e sobre a dor

E esses benzocas bancários, latifundiários,
oportunistas, caciques, parasitas, patos bravos, 
vão logo comprar um potente calhambeque
e construir solários ou palácios sumptuários,
e viva a pipa da CEE cheia de massa de cherne
temperada e cozinhada por mentecaptos 

Com que então uma pipa de massa da Europa,
vão à fava,
como se fôssemos gente que adora
ser humilhada,
como se fôssemos uns pedintes,
como se fôssemos gente parva,
vão à fava
seus vendedores de farinha de nada 

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Uma gaivota

Uma gaivota jazia
sozinha, quietinha,
na areia fresquinha
da maré vazia

Estava desfalecida,
estava a morrer,
quis dar-lhe vida
e ela a morrer

Levanta-te e voa,
ó triste gaivota,
junta-te ao teu bando,
retoma o teu canto

Ela mexeu-se e abriu
o bico, talvez para dizer
que o seu fulgor fugiu
e que quer apenas morrer

E ela nada me pede
e eu nada faço por ela,
talvez só tenha sede,
talvez melhore com a maré

segunda-feira, 4 de agosto de 2014


O sistema financeiro

O sistema financeiro
resume-se a um alçapão
para onde o nosso amigo e conselheiro
que, por mero acaso, também é banqueiro,
atira o dinheiro que lhe é dado em mão

E o dinheiro é multiplicado
por debaixo do alçapão,
melhor dizendo, é alavancado,
e ninguém percebe essa multiplicação,
é o tal sistema opaco,
e quando não alavanca
é por culpa da alavanca

Mas quando os vigilantes
da ética financeira liberal
entram no buraco que o alçapão tapa,
descobrem sempre que não há lá nada,
sumiu, evaporou, foi-se com o vendaval,
não, não é roubo, nem roubalheira,
apenas falhou a engenharia financeira,
e, assim, nenhum desses engenheiros
vai catar piolhos para a Carregueira
e quem ficou a arder que chame os bombeiros,
e que viva o liberalismo e a canalhice financeira 

E nem sequer podemos ir
aos fundilhos desses financeiros ladrões,
que, por serem da alta finança,
não roubam, não são ladrões,
ficam somente menos cagões
por uns tempos;
enquanto dura o cerco e o aperto
ainda lhes dá a diarreia,
mas isso dura pouco,
os cagalhões duros, bem cagados,
merda pura e com altos teores de ouro,
depressa dão lugar às poias
dessa merda liquefeita, que é só de pobre,
ah, mas isto ainda vai acabar mal,
ah, vai, vai

E o Banco dos Espíritos Santos
passou hoje a ser o Banco Mau,
o Banco do Diabo,
e não vale a pena rezar ao São Mateus,
foi todo o dinheiro por água abaixo,
e os Espíritos Santos subiram aos Céus,
porque aqui na Terra ninguém os acha

domingo, 3 de agosto de 2014

Agosto

E chegou Agosto, e já estamos em Agosto,
e temos praia, sol e chuva de muitas estrelas,
as lágrimas de São Lourenço após o sol-posto,
são os restos do Swift-Tuttle e de outros cometas

E eu que gosto tanto dos cometas,
são bonitos, são angélicos,
são vagabundos, são  borboletas,
e, ainda por cima, não são esféricos

E os cometas têm cauda e esporas
e talvez não sejam o que se diz,
pois parecem setas voadoras
disparadas por arlequins

Ou serão antes flores aladas
lançadas ao vento estelar
por estrelas apaixonadas
e com ânsias de amar

Ou serão amuletos do mal
que anunciam fomes na Terra
deixados no espaço sideral
por algum deus da guerra

Ou serão naves tripuladas
por seres alienígenas
que esqueceram as coordenadas
do lar de onde são indígenas

Ou serão as trombetas do apocalipse
tocadas pelos cavaleiros do inferno,
ou não houve alguém que já disse
que o mundo acaba no próximo inverno

Ou serão apenas e afinal
cornetas sopradas por querubins
que anunciam o Dia do Juízo Final
às almas penadas e afins

Sejas o que fores ó cometa,
espero que na tua próxima viagem
a este terráqueo planeta
eu ainda esteja nesta paragem

O quê! dizes-me que voltas cá
só daqui a um século
e que então o que é já não será
e que eu serei um tubérculo

Vai-te ó mau mensageiro
desta minha Via Láctea
e que te façam prisioneiro
já na próxima galáxia

E daqui a um século
eu serei um unicórnio alado
e não um tubérculo,
seu pedaço de gelo com rabo

E se então te encontrar no espaço
mandar-te-ei contra um planeta,
ficarás morto, despedaçado,
e ninguém saberá que foste cometa

Esperem, estou a delirar

Eu só queria falar do mês de Agosto
e, afinal, fiquei zangado com um cometa,
desculpem o desvario da minha caneta,
às vezes não me obedece e o verso sai torto
-------------------------------------------
Que tenham um excelente Agosto

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Primeiras primárias

Estou entusiasmadíssimo,
que é o mesmo que dizer
com muito tesão, ou tesíssimo,
com as primeiras primárias
de um partido político português

Nestas primeiras primárias.
voto eu, o meu primo, a minha prima,
o meu cão e a cadela da minha vizinha,
e, segundo umas sondagens, ainda precárias,
o melhor ganhará ao pior,
mas o pior é que o vencedor poderá ser o pior
e não o melhor

Pelo menos não haverá chapeladas,
garantia do Coelhone,
mas, ó Coelhone das trapalhadas,
é melhor silenciares o teu megafone,
eu até sei de uma laranjeira
que passou a dar laranjas cor-de-rosa
e de um grupo de excursionistas
da freguesia da Carpalhosa
que sempre foram carneiristas
e que agora vão votar nas primárias
socialistas

Vá lá, Coelhone,
não negues, confessa
que não tens controlo
na coisa, vá lá, confessa

E tu PS,
deixa-te de espectáculos eleitorais
à americana, que é gente rica,
e resolve os teus problemas
apenas com o voto dos teus militantes
que tenham a cota em dia,
e não cries mais dúvidas, mais dilemas
aos que, sendo apenas teus votantes,
estão a ficar hesitantes

sábado, 26 de julho de 2014

Doces conventuais

Agarra um camelo,
dos verdadeiros,
dos que marcham no deserto
sem beber

Agita-lhe os tomates
com muita força,
e recolhe em latas
o que lhe sai pela boca

E tens a baba de camelo,
a verdadeira,
não a falsa, a do leite condensado,
das gemas e das claras em castelo,
só calorias e caganeira

E se não te dão baba de camelo,
da verdadeira,
também não aceites toucinho do céu
nem barriga de freira

Porque o toucinho não cai do céu,
nem a barriga de freira é de aluguer,
é tudo para enganar a fome ao ingénuo
e encher-lhe a barriga de merda

São apenas doces conventuais,
diz-me o pasteleiro besuntado
de manteiga, de açúcar mascavado
e de restos de outros minerais

E diz-me também o mesmo pasteleiro
besuntado que os que comem doces
não protestam, com pouco dinheiro
sentem a barriga cheia de nozes

Mas eu prefiro a tigelada de sericaia
feita com amor, rigor e verdade,
lá nas terras alentejanas do Caia,
não engana, nem os tolos, nem a idade

E o pasteleiro besuntado e convencido
prepara todas as noites a massa dos bolos
que só servem para enganar os tolos
que são pobres e julgam ter vida de rico

E voltamos ao camelo
do deserto,
a esse não lhe vão ao pelo,
é esperto,
alomba com as cargas,
mas se decide parar, pára mesmo,
e não há mais frete,
a carga que vá às costas
do diabo que a carregue

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Uma tarde

A ventoinha que ventila
o ânimo
está no mínimo,
quase vacila

E corre a tarde amena,
sem vento,
e fico a imaginar o imenso,
em silêncio

E estou leve, num aparente conforto,
como se não fosse corpo,
bastaria uma rabanada de vento
para me levar para esse imenso,
para me levar a planar,
ou a caminhar sobre o mar,
ou a vaguear no firmamento
entre a Aldebarã e a Polar

Mas respiro fundo
e absorvo a pequenez
do meu ser limitado
e a falta de respostas
aos meus porquês,
e fico mais pesado

Mas, porquê?
Mas, porquê?
Tanta pergunta,
tanta dúvida

E respiro, e penso,
e formulo hipóteses
e recorro ao bom senso,
e desisto, não tenho provas
que me provem o imenso

E fico outra vez mais leve, a pairar,
mas tenho uma recaída
e volto às perguntas e às hipóteses,
e não tenho respostas, é a minha sina,
a minha angústia servida em doses
moderadas de paranóia e de ânsia

E fico-me abatido
com a minha insignificância
e ignorância
e, num inquieto sossego,
adormeço

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Holanda

Holanda, Países Baixos, holandeses,
eu fui educado por eles,
o José Lataster, o Leonardo,
o Marcos, o Guilherme, o Gerardo,
todos com nomes aportuguesados,
mas eram holandeses,
simples, cultos, simpáticos,
pragmáticos,
aos 12 anos já sabia
que o Salazar era um fascista

Hoje fiquei emocionado,
os holandeses estão de luto,
em silêncio,
naquele país até a revolta
é paciência

Estou convosco
O ovo

A fêmea galinha põe o ovo
sem dor,
até cacareja,
e se o ovo tem, ou não, pintainho,
depende da arte do macho galo,
que é o dono da capoeira,
e se o macho galo galou bem a fêmea galinha
basta o ovo ficar bem choco
para dar um pinto ou uma pinta

Mas, coitada da fêmea mamífera,
até pode ter gozo
quando é fecundado
o seu ovo,
ou, pelo menos, pode sentir o gozo
do mamífero macho
quando ele é fecundador,
o problema é parir sem dor
o fruto desse gozo

Ainda se fosse
como o ovo da galinha já choco,
em que o nascituro só tem que partir
uma ténue casca de ovo
para ver a luz do dia

Mas não é,
o nascituro da fêmea mamífera
rasga tudo
até lhe darem a ver a luz,
rasga o ventre, o tubo,
as paredes das margens,
rasga também a foz,
e depois de estar cá fora
chora, chora, chora
até lhe darem de mamar

E assim é,
enquanto a galinha
não sofre nada
para ter a sua ninhada,
a fêmea mamífera
sofre horrores para parir
e ainda por cima não descansa,
pois tem logo que dar mama

Apesar de tudo, quem fez isto assim
até o fez bem feito,
imaginemos o que aconteceria
se, mesmo com a fêmea a jeito,
o macho fecundador
não tivesse gozo
quando fecunda o ovo,
seguramente que do ovo
nunca sairia nem pintainho,
nem porquinho,
nem qualquer outro miminho

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Noite de lua cheia

Noite de lua cheia e perdi-me na floresta,
desorientei-me,
e apareceram logo os lobos, as bruxas e os lobisomens
e, em círculo, deram início à festa

Acenderam uma fogueira com achas e caruma,
e em cima de uma trempe gigante
colocaram um panelão com água benta
que não demorou muito a levantar fervura

Animou-se o festim
quando soaram as doze badaladas,
mas que frenesim,
começaram a lançar para o panelão a ferver
muito louro, muita pimenta,
muito sal, muita banha, muito colorau,
enquanto entoavam cânticos às almas penadas
e liam em voz alta a ementa
do manjar do sarau:
corpo de humanóide, cortado aos bocados,
estufado em molho picante, servido em salvas de prata,
acompanhado com abrolhos crus, alhos laminados,
malaguetas desfeitas, trovisco seco, maçaroca assada
e esparregado de nabiças com espinhos de cardos

Noite de lua cheia, meia noite,
e eu perdido na floresta entregue às bruxas
e à sua malévola companhia,
e vou ser o seu repasto, a alcagoita
que vão mastigar até ficarem embuchadas

Mas logo eu que sou tão gordo, tão toucinho,
tão cheio de colesterol e de triglicerídeos,
com tanto veneno no sangue, tão feiinho,
não, não mereço tal destino:
ser cozido num panelão em água benta a ferver,
será que ninguém me está a ver?
será que ninguém me vai valer?

E, ao ver as bruxas com tridentes,
um lobisomem com uma catana na mão
e os lobos a arreganharem os dentes,
comecei a ter a sensação
que já era, já fui, adeus minha gente,
adeus

Foi quando acordei,
estava encharcado em suor frio
e a tremer,
mas estava inteiro e vivo, que alívio,
foi apenas mais um dos sonhos
estapafúrdios que costumo ter,
e garanto-vos que vi bruxas desdentadas
lobos esfomeados e lobisomens de fraque
que me queriam para o seu manjar,
acreditem, é mesmo verdade

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Os "bags" de cinco litros

Que saudades tenho dos garrafões
de vidro empalhados
de 5 litros que levavam vinho, azeite,
aguardente,
ou o que se quisesse meter lá dentro,
eram a nossa imagem mais perfeita
como povo rústico e bonacheirão,
mais nenhum povo teve um garrafão
como o nosso garrafão

Agora temos aqueles pacotes
que se chamam "bags",
são higiénicos, simpáticos, coloridos,
bonitinhos, com pegas
ergonómicas
e outros picotados de muitas pregas

Mas a minha falta de jeito
para lidar com recipientes hodiernos
torna-se drama com os "bags",
é que nunca consigo pôr direito
aquele mecanismo tão terno
(que é a torneira dos "bags"),
eu dou-lhe voltas, acaricio-o, massajo-o,
envolvo-o com as duas mãos,
puxo-o para fora com cuidado,
mas nunca o consigo pôr direito
a correr para baixo,
será só a minha falta de jeito
para agarrar no pacote?

Talvez, mas se alguma vez
o meu "bag" estoirar
e entornar todo o tinto,
ou todo o branco,
vou-me ao vendedor
e não saio de lá sem um garrafão
de cinco litros de tinto, ou de branco,
do melhor,
e não me digam que o vinho entornado
traz alegria e felicidade,
até pode ser que sim,
mas eu prefiro a alegria que me dá
beber um copo de vinho bem cheio,
do que vê-lo derramado pelo chão,
é que, como já dizia o velho taberneiro,
vinho entornado nem as galinhas o apanham

terça-feira, 15 de julho de 2014

A família Espírito Santo

Andam por aí a dizer
que eu sou da família Espírito Santo,
que me chamo
Vitório Ricci Espírito Santo Rei
e que sou bisneto do avô
que deu origem a tão distinta
família divina

Que ignóbil boato,
só pode ser coisa do diabo,
eu sou Vitório, nome próprio,
e sou Rei porque o meu pai era Rei
e a minha mãe Rainha,
e o que deles herdei
é toda a minha riqueza,
a honestidade e a franqueza

Mas, já sonhei muitas vezes
que era podre de rico,
tinha chauffeur e vários mercedes
dormia em hotéis de cinco estrelas
e privava com espíritos santos
rodeado dos maiores faustos,
o pior era quando acordava,
dava-me o fanico;
por isso, em verdade, em verdade vos digo
e se eu fosse Espírito Santo
já teria fugido
para uma das suas ilhas offshores
onde têm o dinheiro dos credores

- Ficar teso e preso é que não,
jamais,
credo, te renego satanás -
grita, em surdina, o Espírito Santo mais mandão,
e ninguém sabia das trafulhices,
nem os governos, nem os tribunais,
nem os amigos, nem os inimigos;
vão todos bugiar,
que encontrem agora, ao menos,
um Espírito Santo de orelha
e que nos diga toda a verdade

E que se afundem, seus vigaristas divinos,
graças a Deus, não tenho acções vossas,
aliás, não tenho acções de ninguém,
o meu salário não dá para comprar acções,
só dá para praticar boas acções,
pratiquem também vocês agora uma boa acção,
paguem o que devem, seus ladrões

domingo, 13 de julho de 2014

Não chores, Brasil

Ei, vocês aí do Brasil,
seus caras de tristezas mil,
não rezem, não chorem,
revoltem-se antes contra quem
vos vende papas e bolos
e ilusões mascaradas em golos,
em rituais, em preces,
me salve iemanjá, orixá candomblé,
Brasil indígena, Brasil africano,
Brasil mestiço, Brasil branco,
Brasil verde e amarelo,
Brasil de todas as cores,
Brasil arco-íris,
não chores

sábado, 12 de julho de 2014

Debaixo da parreira da dona Maria Emília

Para ir dar um beijo à dona Maria Emília,
tenho que descer o íngreme caminho
que me separa do vale, do Vale da Ceta,
mas quando lá chego, cheira-me logo a simpatia
e a tudo o que me recorda a crueza
da vida de uma pessoa tenaz que subia
o mesmo caminho de bicicleta
carregada de chaputa e de sardinha
para vender bem no cimo da serra
nos tempos em que uma sardinha
era para mais do que um e se berravas
por mais ias pegar logo na forquilha
e tirar o esterco às vacas
para saberes o que custava a vida

E a dona Maria Emília
ainda me dá sardinhas
que eu como debaixo da sua parreira
assadas com toda a perícia
e acompanhadas com salada, batatas e pimentos,
tudo regado com vinho tinto à maneira,
e na companhia da sua família,
sempre alegre, sempre porreira,
tudo uma delícia

Um gosta muito de pimentos,
mas só dos vermelhos,
os verdes provocam-lhe indigestão
e incham-lhe os artelhos

O outro come e bebe de tudo,
e depois de tudo comido e bebido
diz que tudo o que come e bebe
lhe faz mal a tudo, e eu condoído

E eu debaixo daquela parreira
também como e bebo de tudo,
e se não estivesse quase barrigudo
ainda bebia mais da velha bagaceira

E, bem satisfeito,
volto a subir o íngreme caminho
que me leva ao lugar da Perulheira
mas tenho que respirar fundo e encher o peito,
e quando chego ao cimo
imagino como era dura
a vida da dona Maria Emília
que subia o mesmo caminho
de bicicleta carregada de chaputa
e de sardinha

Bem haja dona Maria Emília

sexta-feira, 11 de julho de 2014

O Alcides

Fui à janela e vi o Alcides,
há muito tempo que não o via,
ainda tem aquela cara de curdo,
o cabelo em espinha
e o bigode farfalhudo,
mas o Alcides está mais velho,
vejo como ele caminha,
a cambalear, a coxear,
e tem o ventre proeminente,
pareceu-me que ia a resmungar,
estará doente?

Ó Alcides, Ó Alcides,
não me ouviu, está surdo,
o Alcides, o curdo,
o herdeiro do Conde de Benevides,
como ele dizia,
quando nos juntávamos à noite já tarde
sob a bandeira da anarquia,
jovens a filosofar
e sem dinheiro para pagar o jantar,
meia dose de bife de sola, o prato do dia

Ouve-me, Alcides, ouve-me, Alcides,
e o Alcides desapareceu da minha vista,
foi-se, seguiu a sua vida,
será que ele ainda é anarquista?
será que ele ainda acredita na revolução?

Merda, o nosso tempo passou
e não fizemos a revolução

quarta-feira, 9 de julho de 2014

O meu aspirador

Liguei o aspirador,
vrummmmmmmm,
não passa de um bicho robot
e sempre mal disposto,
vrummmmmmmm,
enganei-me no acessório
e aspirei a minha paciência
em vez do pó
da despensa

O meu aspirador
é  um corpo com motor,
mas não anda sozinho,
para andar tem que ser puxado,
é só mimo,
e depois tem tubos, escovas, bocais,
filtros, mangueiras, pegas, e tem um saco,
e eu aflito

Vrummmmmmmmm,
e no hall dos quartos, não sei como, enrolei
o meu pé direito no cabo que liga o meu aspirador
à electricidade e dei uma tal pirueta que fiquei
de pernas para o ar em cima do corpo
do meu aspirador e ele sempre a bombar
e eu tombado, vergado, todo torto,
a transpirar, em brasa,
vrummmmmmmmmm,
cala-te seu badameco,
seu tractor de trazer por casa,
não vês o que me fizeste?

Vrummmmmmmmm,
não se calou,
continuou a aspirar os pós
e os pozinhos e os novelos
de cabelos,
e o meu aspirador encheu o saco
de pó e de tudo o que fica de nós
no chão, no soalho

E esvaziei o saco cheio,
mas fi-lo com tanta falta de jeito
que o pó saiu-me do saco
como se fosse fogo-fátuo
e espalhou-se à minha volta
e voltou a voar à solta
e voltou a assentar no meu soalho
que já estava aspirado e lavado

Liguei outra vez o aspirador,
vrummmmmmm,
e ele aspirou outra vez o mesmo pó
que saía em tornado
do corpo do aspirador,
fiquei atónito,
esqueci-me de pôr o saco

domingo, 6 de julho de 2014

Bebemos sangria

Ontem bebemos sangria,
sangria de vinho tinto de uvas pretas,
trincadeiras,
que, por se colorirem de preto
quando amadurecem nas videiras,
deveriam dar vinho preto,
e não vinho apenas tinto,
depois de serem massacradas no lagar
e obrigadas a largar o seu mosto
que dá um néctar muito apreciado
pelos deuses do bom gosto,
o Dionísio e o Baco

E bebemos sangria de vinho tinto
servida com pedaços de fruta fresca,
tudo a borbulhar,
até o próprio recinto
borbulhava de conversas
e de pássaros
que também comiam das travessas

E bebemos sangria,
foi bom, foi simples, foi celestial,
no "Terra", ao Príncipe Real,
em boa companhia

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Reforma

Reforma, rotina parada,

vou ter que pensar, a sério,
vou tentar saber viver,
ou então não fazer nada

Tédio


Ou então vou tentar preencher

uma alma vazia cheia de medo

Remédio


Deitar, acordar, comer,

deitar, acordar, deitar

Dormir


E um dia morrer

e não mais acordar,
isto é, ou não, para rir?
vá, digam lá ...

Não, não vale a pena chorar

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Desesperadamente

Preciso desesperadamente
de ver gente feliz,
gente contente,
gente com esperança,
gente que quis
e que quer ser gente,
gente de trabalho e de dança

Preciso desesperadamente
de voltar à minha criança
e rever os rostos de gente
de então,
rostos carregados de rugas
cor de carvão
e com risos desdentados,
rostos de nenhuma fartança,
rostos secos e desamparados,
mas sempre com muita esperança

Preciso desesperadamente
agora de sentir essa mesma esperança,
preciso de ver gente em paz,
de ver gente sorridente,
de ver gente capaz
de dar cabo de quem mente

Desesperadamente
não quero ver mais desespero,
mais tristeza, mais desalento,
mais angústia, mais medo,
quero ver esperança, quero, quero,
quero desesperadamente
deixar de esperar o que quero

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Faz hoje anos

Faz hoje anos
que nasceu uma rosa,
toda ela cor,
toda ela mimosa

Essa rosa cresceu,
riu, chorou, teve medo;
cresceu e cimentou as raízes
que a agarram ao tempo
e que definem os seus matizes,
a sua memória,
o seu gene, o seu temperamento,
a sua história

Essa rosa
continua a crescer
e a ter medo, e a rir, e a chorar,
e a ansiar, e a viver,
e a amar

Essa rosa é,
essa rosa vai continuar a ser

Parabéns, filha,
que sejas muito feliz

domingo, 29 de junho de 2014

Futebol 

Chuta, cruza, passa, defende,
marca, rasteira, canto, golo,
não foi, estava fora de jogo,
fora o árbitro, tá contra a gente

A bola rebola, não é quadrada,
saltita, pula, foge, é fora,
passou a linha, foi embora,
foi por alto, para a bancada

Ó tu aí, estás por quem?
o quê? não és dos nossos?
quebro-te já o nariz, os ossos,
eu e a minha trupe do Borratém

A bola rebola, é esférica,
quem a chuta é profissional,
quem a coseu vive muito mal,
é criança, tem fome, é esquelética

Ai a minha canela, ai o meu joelho,
não posso jogar, não marco golo,
deram-me cabo do artelho,
e acordei com um torcicolo

E o seleccionador não me escolhe,
apesar de ser muito famoso,
mas faço-me de manhoso
e digo-lhe que já não me dói

A bola rebola e é de sola,
agita e lava muito dinheiro,
uns jogam por amor à camisola,
outros para encher o mealheiro

E quem desmaia já não joga,
chuta, cruza, rasteira, golo,
não foi, a bola foi para fora,
ora bolas, mas que desconsolo

Rebola a bola profissional,
mas eu prefiro a bola de trapos
e os chutos dos putos no lamaçal,
felizes, descalços e já craques

Finta, corre, finta, leva a bola
colada aos pés, olha, remata, golo,
a bola entrou mesmo na gaiola,
foi golo no último minuto do jogo

E que o Brasil seja o campeão
do seu campeonato do mundo
de futebol e de muita ilusão
e que acache o seu "mundo imundo"

Que haja samba, bundas e capoeira,
alegria nas favelas e nas avenidas,
nos matos, planaltos e campinas,
"para tudo acabar na quarta-feira"