quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

O mar

Versos de água salgada
surgiram de repente na bruma
criada pelas ondas de espuma
que se espraiavam 
na praia

E eu consegui ler
esses versos de maresia,
pois ficaram gravados
na areia macia
assim deixada
pelas ondas em retirada
que se espraiaram
na praia

E porque o mar é eterno,
e eu não,
deixo estes versos neste caderno
como prova de que em certo dia
contemplei o mar
e consegui ler o que ele dizia,
mas o que li não vos revelo
porque é segredo

Mas podem saber
que sempre que contemplo o mar
imenso e misterioso
apetece-me senti-lo,
ora quando se espraia
na praia, meigo e tranquilo,
ora quando bate na rocha,
violento e poderoso,
oferecendo-me sempre pétalas de sal e cheiros a iodo
e não exigindo nada em troca

domingo, 26 de janeiro de 2014

Luar de Janeiro no Mar da Palha

A noite começou fria e escura
e de repente,
lá dos lados de nascente,
apareceste tu ó Lua,
vinhas vestida de cor ardente
e depois cor de laranja
e, com trejeitos de galante,
estendeste os teus cabelos de luz
pela planície feita de mar
e aí desenhaste um caminho de luar
por aonde me apetecia caminhar

Mas afinal quem és tu ó Lua
que ora te escondes, ora apareces,
umas vezes minguante, outras vezes de cara cheia,
vá lá não sejas pedante
julgas que eu não sei que a luz que ofereces
não é tua, mas alheia

Mas ó Lua, se não dizes quem és
diz-me ao menos porque continuas aí pendurada
sempre previsível e conformada,
faz qualquer coisa,
revolta-te, explode, desintegra-te,
vai banhar-te a Marte,
choca com a Terra,
apaga-te ou transforma-te em estrela,
vai passear até Júpiter,
faz um milagre
ou então faz um pacto com Lúcifer,
entorna os oceanos, rebenta...rodopia

Está bem ó Lua,
segue o teu caminho errante
e não faças nada do que eu disse,
mas quando voltares a aparecer assim de cara cheia,
provocante e arrogante,
vou fazer-te um feitiço
e vais deixar de ter luz alheia,
ficas pior que um cortiço
sem abelhas nem geleia

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

A crise e a queda dos anjos

Mas que grande estrondo,
o barulho vem d´além,
o que terá sucedido?
caiu do céu um anjo, dizem,
mas os anjos também caem?

Caem
porque se queimaram as asas,
ou as cortou alguém,
ou estavam fracas
para o peso do anjo
que se avantajou

Outro estrondo,
outro anjo que caiu
e este ninguém viu,
quem seria o anjo
que caiu e ninguém viu?

Talvez um anjo mais discreto,
talvez mais espírito santo,
talvez mais esperto,
talvez mais rico,
talvez mais saltimbanco,
talvez mais mafarrico

Agora estão a cair anjos,
a seguir caem os arcanjos,
caem todos,
mas todos levantaram voo,
até os marmanjos,
e todos se amanharam

E nós que nunca fomos anjos
nem sofremos de enjoo
de tanto amanhar e voar
não precisamos de cair
porque nunca levantámos voo,
porque fomos sempre anjinhos
e esses não voam

Outro estrondo,
outro anjo que caiu,
este caiu redondo,
estatelou-se
e toda a gente assistiu,
ficou em trapos, em farrapos,
nesse dia ninguém comeu papos
de anjos, não de patos

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Cantiga aos moinhos da Demó

Gira, gira ó girassol
e abre a tua corola,
embebe a luz do sol
para que ela te console

Roda, roda ó mó,
mói o milho e o trigo
e reduz o grão a pó
que é farelo e farinha fresca,
e quem amassa essa massa
espera que ela cresça
e reza
"Deus te acrescente
e te ponha a santa virtude
que eu por mim fiz o que pude",
mas se não misturar fermento
não sai broa, papo seco ou carcaça,
mas pão ázimo, ou pão de ló,
depende de quem amassa,
roda, roda ó mó
dos moinhos da Demó

Gira, gira ó girassol,
roda, roda ó mó,
e como já se pôs o sol
vou fazer ó ó
dó ré mi fá sol lá si dó

domingo, 12 de janeiro de 2014

Contra

Hoje estou contra,
estou contra tudo e contra todos

Estou contra o meu corpo,
quase invertebrado, quase lesma,
feito de vazio e sem porto,
mexo-o e fica na mesma

Estou contra
os meus ícones,
os meus fantasmas

Basta,
quero ser antes iconoclasta,
quero ser antes cheiro,
tempero, braseiro,
respiração, suor,
basta
(amanhã estarei melhor)

sábado, 11 de janeiro de 2014

O nevoeiro e os teus olhos

Alguma luz se fez
neste dia de nevoeiro,
foi a luz dos teus olhos
da cor do pez
que iluminou o carreiro

Mas o que é o nevoeiro?
serão apenas pequenas gotas de vapor
suspensas no ar feito de maresia
que prolongam a noite pelo dia
e não deixam qualquer odor

Ou serão antes
pozinhos de perlimpimpim
vaporizados pelo todo poderoso
que me deixam fora de mim

E os teus olhos cor de pez
o que são?

Serão apenas
duas pequenas células redondas
feitas de gelatina e de íris
que procuram a luz como sondas
e distinguem as sete cores do arco-íris

Ou serão antes dois potentes faróis
que irradiam feixes de luz
e que se fixam a mim como anzóis
aliviando as minhas angústias

Não gosto do nevoeiro,
mas gosto dos teus olhos

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O meu país foi hoje aos mercados,
e eu também fui

Hoje fui aos mercados com o meu país,
fomos a Dubai, a Paris,
a Tóquio, a Francoforte,
a Londres e a Nova Iorque,
e nada

Já ninguém empresta dinheiro
ao meu país,
ainda dissemos que temos
muito sol, fado e outras cantigas,
sapatos, sapatilhas,
e outras maravilhas
e bacalhau com migas,
florestas sãs e viçosas,
já sem as árvores das patacas
e sem as oliveiras e limeiras carunchosas
e os silvados e loureiros piolhosos

Mas nada,
já ninguém empresta dinheiro ao meu país

Ainda convidei o meu país
a ir à Feira da Ladra
comprar felicidade,
orégãos, alfaces e aniz
ao Bolhão,
sardinhas, caracóis e hortelã
a Portimão,
cochas de frango e pernas de rã
a Monção

Mas nada,
ao meu país já ninguém empresta dinheiro
(e a mim acabou-se o tinteiro)

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Cantiga a um míssil

Ontem entrou um míssil
na minha varanda
e não explodiu
e riu-se para mim e disse:

"Ah ah ah se eu explodisse
iam para os anjinhos,
tu, a tua família e os teus vizinhos
e de seguida viriam os bombeiros
para apanhar os vossos bocados
e metê-los em poceiros.
Viriam também os peritos em explosivos
e concluiriam que eu não explodi
porque o que sonhaste
não se passou aqui,
na tua varanda onde dormes,
mas sim em Bagdad,
em Beirute, em Tripoli,
em Juba, em Allepo,
em Bangui,
etc. etc. etc.
e aí explodi mesmo."

Mas por que será
que os outros mísseis
não são iguais
ao do meu sonho?

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Ensaio sobre o corpo e o espírito

O corpo quer conforto
porque é matéria
e o espírito quer alento
porque é quimera,
não a fera,
mas a imaginação, a ideia, o pensamento

O corpo tem fome ... come,
tem sede ... bebe,
tem sono ... dorme,
molha-se ... seca,
está cheio ... defeca,
arrefece ... aquece,
apodrece ... desaparece

O pensamento,
esse sonha, ambiciona,
deseja, ama, odeia,
tem paixões, anseia,
não dorme, viaja no tempo, voa,
não pára, faz rir, faz chorar,
inquieta, perdoa,
se é crente, é alma
e é eterno,
se não é crente, é razão
e é efémero

O pensamento pode tornar-se louco
e então perde a fé e a razão
e quando deseja prazer
reclama sempre que é pouco
e obriga o corpo a sofrer

Vejam, pois, o que acontece
ao ser que somos,
que, para além de ser corpo,
também pensa,
e se seguirmos as crenças
de que vimos de um acto de criação,
quem nos criou
não mediu bem as consequências,
ou será que seremos apenas
fruto de um mero acidente,
tendo a natureza,
por um erro de manipulação,
juntado matéria ao pensamento,
e o que saiu foi mesmo uma quimera,
a fera

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Um pôr-do-sol à beira mar

Fazia frio naquela tarde,
no amplo mar cor de prata
já se desenhava o pôr-do-sol,
a mim apetecia-me chorar

Todos esperavam o pôr-do-sol,
conformados,
e a mim apetecia-me chorar
e misturar as minhas lágrimas salgadas
com a água do mar
e gritar:
- por favor oh Sol,
deixa-te ficar aí à tona da água,
não te deixes afundar,
não deixes vir a noite;
- descansa companheiro,
amanhã volto a nascer
e estarei contigo o dia inteiro,
outra vez,
prometo

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Ser inteligente

Eu e o meu semelhante
somos o único ser inteligente
que habita neste berço,
quem o negar mente

Este berço
faz parte do universo
que tem triliões de milhões de mil berços
e o criador esperou muito tempo
até depositar esse ser inteligente
neste berço que teve o seu rebento
há mais de triliões de milhões de mil anos
e consta que o primeiro ser descoberto
com indícios de inteligência
tem apenas quatro milhões de anos,
pelo menos é o que se lê no seu esqueleto

Mas terá sido apenas neste berço
que o criador depositou um ser inteligente,
que sou eu e o meu semelhante,
ou foi espalhado por mais alguns
dos triliões de milhões de mil berços
que tem o universo

Dizem que somos os únicos,
somos os únicos, uauuu,
somos os únicos, uauuu,
o quê? vamos desaparecer
óoooo

Feliz 2014 para todos