sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O Fernando Pessoa não era aduaneiro,
mas sabia o que era o valor FOB e o valor CIF

Alguém disse
que o Fernando Pessoa
sabia o que era
o valor CIF e o valor FOB

Se é verdade,
parece que o estou a ver
em desassossego no aconchego
do seu quarto com vista para a Tabacaria,
ainda de pijama, ou talvez de robe,
a procurar uma rima
para valor CIF, ou para valor FOB,
rima rica, ou rima pobre,
tanto valia

Parece que também o estou a ver,
furioso,
a discutir com aquele feirante
que vende gabardinas
e chapéus de coco
pelo valor CIF e não pelo valor FOB,
ou, disfarçado de Álvaro de Campos
e com aquele aspecto de bêbado snob,
a queixar-se ao Martinho, o da Arcada,
que tinha que pedir dinheiro
ao Alberto Caeiro
porque a sua mesada
não lhe chegava
nem para um copo de tinto
quanto mais para um cálice de absinto
que tinha que ser comprado na Suíça
pelo seu valor CIF
e não pelo seu valor FOB

E o nosso Fernando Pessoa
viveu pobre,
mas morreu nobre,
e talvez por não encontrar rima,
nem rica, nem pobre,
para valor CIF e para valor FOB
não nos disse
se os cigarros que a Tabacaria vendia
tinham valor FOB,
ou valor CIF

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Quando cheguei à cidade grande
encontrei-me com este cocktail

Pântanos, pragas e profetas,
barracas, bestas e burros,
tudo isto à mistura com tretas
e ainda prostitutas e proxenetas

Pântanos, pragas e profetas,
barracas, bestas e burros,
prostitutas e proxenetas,
salamandras e casmurros,
cardeais e panascas,
políticos e pedintes,
malvados e tascas,
negociantes de berlindes,
pobres e paupérrimos,
ricos e ricalhaços,
amas e amantes,
munições e marinheiros,
cagões e farsantes,
mansões e pardieiros,
camas com percevejos,
criadas com mealheiros,
pedantes e tesos,

e eu... sim, eu e isto tudo.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

O segredo de Deus

Adão e Abraão
fizeram uma combinação,
não divulgamos a Cabala
e tudo fica em segredo,
o segredo da alma,
o segredo de Deus

Por isso
o Pentateuco e a Torá
só revelam a meia voz
o que é na verdade a vida,
sobre o que há
antes de nós e depois de nós,
donde vimos, para aonde vamos,
ou seja, o segredo de Deus

Deixem continuar esse segredo
e que a Cabala não o revele,
é melhor termos dúvidas sobre o aquém e o além,
apesar do desconforto de termos medo
de sermos ninguém

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Fui carteiro

De facto,
em tempos idos,
quando era muito mais novato,
distribuí cartas e aerogramas
pelas aldeias da minha serra
pedalando numa bicicleta
pesada e pasteleira
que só andava em linha recta
e que fazia uma tal chiadeira
que não era preciso tocar à campainha
para anunciar a chegada do carteiro
às mães da minha terra
que tinham um filho na guerra
ou o marido no estrangeiro

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

O programa cautelar

Hoje bateram à minha porta
e ouvi uma voz a dizer:
- Deixe-nos entrar,
somos o programa cautelar
- São o quê?
E a voz repetiu
- Somos o programa cautelar,
deixe-nos entrar
- Mas eu não costumo comprar cautelas
- Mas nós não vendemos cautelas
- Então vendem o quê ?
- Vendemos programas cautelares
- E não é a mesma coisa?

Como não responderam
não lhes abri a porta,
era o que faltava
atender vendedores de cautelas
à minha porta

domingo, 16 de fevereiro de 2014

O errante

Faz muito frio e anoitece,
sou um estranho nestas paragens,
ninguém me conhece,
os caminhos trouxeram-me aqui
e não me perguntem por onde passei,
nem o que vi

Olho em redor,
dacolá sai uma luz,
talvez lá dentro more o conforto
e o calor,
apetece-me pedir para entrar,
mas recuo,
as gentes daquele abrigo
podem não entender o que eu digo,
oh meu Deus,
quanto deve custar ser mendigo

Amanhece e faz muito frio,
estou ainda no mesmo sítio,
mas esqueço a cor do anoitecer
e, contemplando a clara madrugada,
tomo outro rumo,
outra estrada
"afinal não és mendigo,
és apenas um errante"
diz-me uma voz distante
que me conhece

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Eu e os 4 elementos

Deixem correr o rio que sinto dentro de mim,
não o moderem com açudes ou barragens,
não limitem o seu curso nem as suas margens,
que corra livre e caudaloso até ao seu fim

Deixem-me respirar o ar que me envolve
e que me aconchega neste meio ambiente
que é apenas uma esfera de ar frio e quente
que se conserva cheia e não se dissolve

Deixem-me cuspir fogo quando sou vulcão,
quando a raiva se molda em magma incandescente
e cada sopro meu se transforma em erupção

Deixem-me afinal pisar apenas este chão
feito de pedra e barro e é-me indiferente
se lhe chamam terra ou se lhe chamam plutão

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Calhou-me um popó

Vejam só
o que me aconteceu,
calhou-me um popó
novo e de gama alta,
mas que grande fartura,
mas não me faz falta
esse popó,
preferia antes
um quadro do Miró

Mas que grande fartura
o meu popó,
gasta 15 litros aos cem
de gasolina
e só para lhe limparem
o pó
tenho que lá deixar a minha
camisa

Mas que grande fartura
o meu popó,
preferia antes um quadro do Miró
sem factura

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Fui feliz em Vaiamonte

Sete sestas
eu dormi
na casa das giestas

O silêncio e o calor
e o cheiro a erva também
fizeram-me viajar
em sonhos de esplendor
que quase atingi o além

Para não falar do anoitecer
e do luar
e dos sons do monte
e do sol a nascer
dos lados da aldeia
que dizem chamar-se Vaiamonte

E ainda da simpatia
de quem nos acolheu
e acompanhou desde o primeiro dia

Saudades eu tenho, pois,
daquela casinha
que, por ser das giestas,
nunca será minha,
mas prometo voltar lá
nas próximas festas

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

O silêncio

Anoitecia lentamente,
a panela cozia a sopa de couves
na lareira em cima duma trempe
que iria encher a minha malga
de um caldo bem quente,
lá fora não se ouvia vivalma,
o povoado estava em silêncio profundo
e a noite pintou-se de breu
à luz da candeia de azeite,
este era o meu mundo

Nessa noite ao deitar-me confortado
com o som do silêncio
ainda ouvi o piar de um mocho
e, ao longe, o latido de um cão,
que logo se calou,
e o silêncio voltou

Terei adormecido em paz
e desde essa noite, que não esqueço,
fiquei a saber que o barulho que o tempo faz,
ao passar por nós,
é simplesmente o silêncio 

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Trocadilhos sobre os ricos e os pobres

Os ricos
fazem salamaleques e queques,
estrebucham na estrebaria,
vendem trapos e cheques,
comem bifes da vazia
e fazem truques de magia

Baloiçam nos balancés
e jogam o jogo da cintura,
nunca levam com os pés
e almoçam com o sr. cura

Andam sempre em bolandas
e falam bem e convencem,
depositam o dinheiro nas holandas
e dizem que têm o que merecem

Os pobres
mendigam salário e pão
e revolvem os caixotes do lixo,
dormem em camas de cartão
enrolados como um bicho

Agora deixo-me de versos
para dizer que os queques
são cada vez mais ricos
e os pobres cada vez mais pobres
e que os pobres só serão menos pobres
se forem aos alforges
dos senhores borges
cada vez mais ricos
à custa dos pobres

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Cair na lama

Por vezes cai-se na lama,
chafurda-se,
e a lama torna-se mais pesada,
mais densa, mais cama
para quem não ousa ter sono
e que transporta uma alma amargurada
que insiste em não querer dono
e vagueia à deriva no tempo
que forjou os tormentos
que atormentam a alma
e os pensamentos

Para quê pensar se isso nos apoquenta,
já questionava o Vergílio Ferreira
na sua Conta Corrente,
e não nos deixa contemplar a eira,
o quintal, o milho a secar,  o pio das aves,
a bonança, as tempestades,
o sol, a lua, as estrelas
a noite, o frio, o calor, as flores, as abelhas,
a primavera quando esquenta,
temos que dizer não à morte lenta