segunda-feira, 30 de junho de 2014

Faz hoje anos

Faz hoje anos
que nasceu uma rosa,
toda ela cor,
toda ela mimosa

Essa rosa cresceu,
riu, chorou, teve medo;
cresceu e cimentou as raízes
que a agarram ao tempo
e que definem os seus matizes,
a sua memória,
o seu gene, o seu temperamento,
a sua história

Essa rosa
continua a crescer
e a ter medo, e a rir, e a chorar,
e a ansiar, e a viver,
e a amar

Essa rosa é,
essa rosa vai continuar a ser

Parabéns, filha,
que sejas muito feliz

domingo, 29 de junho de 2014

Futebol 

Chuta, cruza, passa, defende,
marca, rasteira, canto, golo,
não foi, estava fora de jogo,
fora o árbitro, tá contra a gente

A bola rebola, não é quadrada,
saltita, pula, foge, é fora,
passou a linha, foi embora,
foi por alto, para a bancada

Ó tu aí, estás por quem?
o quê? não és dos nossos?
quebro-te já o nariz, os ossos,
eu e a minha trupe do Borratém

A bola rebola, é esférica,
quem a chuta é profissional,
quem a coseu vive muito mal,
é criança, tem fome, é esquelética

Ai a minha canela, ai o meu joelho,
não posso jogar, não marco golo,
deram-me cabo do artelho,
e acordei com um torcicolo

E o seleccionador não me escolhe,
apesar de ser muito famoso,
mas faço-me de manhoso
e digo-lhe que já não me dói

A bola rebola e é de sola,
agita e lava muito dinheiro,
uns jogam por amor à camisola,
outros para encher o mealheiro

E quem desmaia já não joga,
chuta, cruza, rasteira, golo,
não foi, a bola foi para fora,
ora bolas, mas que desconsolo

Rebola a bola profissional,
mas eu prefiro a bola de trapos
e os chutos dos putos no lamaçal,
felizes, descalços e já craques

Finta, corre, finta, leva a bola
colada aos pés, olha, remata, golo,
a bola entrou mesmo na gaiola,
foi golo no último minuto do jogo

E que o Brasil seja o campeão
do seu campeonato do mundo
de futebol e de muita ilusão
e que acache o seu "mundo imundo"

Que haja samba, bundas e capoeira,
alegria nas favelas e nas avenidas,
nos matos, planaltos e campinas,
"para tudo acabar na quarta-feira"

sexta-feira, 27 de junho de 2014

A minha aura

A frescura
das margens de um ribeiro
de água pura
a correr por um caneiro
com pressa de chegar,
talvez ao mar

E a sombra de uma acácia
também pura, também fresca,
que refresca
quem está e quem passa
nas margens do ribeiro
que alimentam o melro e o moleiro

E que também alimentam a minha aura,
fresca, mas também quente,
como um banho de sauna,
olhem, estou a levitar, sou transcendente,
imóvel, mas sempre a viajar,
ó ribeiro, leva-me contigo para o mar

O ribeiro não me levou,
fiquei estático e aluado,
afinal, não sou mais do que sou,
mas ainda sonho que sou alado,
será que preciso de voar
para continuar a sonhar?

Guarda-me ó ribeiro,
protege-me ó acácia,
o vento que sopra é sobranceiro,
quase desmorona a minha estátua,
eu quero continuar a levitar,
eu quero continuar a sonhar

Resguarda-me ó minha aura,
não te evapores, não rebentes,
quero estar junto desta água pura,
assim, desligado, transcendente,
dentro de ti, minha aura dourada,
porque fora de ti serei ninguém, serei nada

quinta-feira, 26 de junho de 2014

- Um poema basco -

Hegoak

Hegoak ebaki banizkio
neria izango zen
ez zuen aldegingo
bainan honela
ez zen gehiago txoria izango
eta nik
txoria nuen maite

(autor: Joxean Artze, musicado e cantado por Mikel Laboa)

Tradução para castelhano (fonte: internet)

Alas

Si le hubiera cortado las alas
habia sido mio,
no habia escapado,
pero así,
habia dejado de ser pájaro
y yo
yo lo que amaba era un pájaro

terça-feira, 24 de junho de 2014

Não toquem nas minhas flores

Exércitos, carnificinas, invasões,
raptos, fuzilamentos, bombardeios,
toyotas de caixa aberta e canhões,
e obuses, e nuvens de pó e morteiros,
guerreiros bem nutridos, matulões,
bombas, sangue, mísseis certeiros

Combatentes crentes e fortes
conquistam aqui e acolá,
disparam e contam mortes
e se morrerem voam para lá
da fronteira dos contrafortes
e aterram no paraíso do ... sei lá

Sunitas contra xiitas contra alauítas
contra alevitas contra ismaelitas
contra judeus contra sikhs
contra hindus contra budistas
contra maronitas contra coptas
contra ortodoxos contra anglicanos
contra luteranos contra calvinistas
contra católicos contra seitas,
contra, contra, contra,
quase todas as religiões são contra,
e são contra porque quase todas nasceram violentas
e cresceram matando quem era contra

Pois, que se continuem a matar, que se comam,
que defendam os vossos deuses, as vossas divas,
os vossos profetas, os vossos mestres, as vossas fadas,
as vossas tribos, os vossos califas,
com ódio, com sangue, com espadas,
com pólvora, com terror,
pois, que se continuem a matar, que se comam,
que ergam fábricas de horrores,
que se comam, que se esfolem,
mas não toquem nas minhas flores,
ouviram bem?
não toquem nas minhas flores

sábado, 21 de junho de 2014

Somos tão pequeninos

Já viram
que andamos todos à volta do Sol,
à mesma velocidade,
na mesma trajectória elíptica,
transportados pela gravidade
da Terra,
da nossa terra?

Já viram
que a Terra roda e roda
e não entorna
os oceanos, os lagos, a fauna, a flora,
nem se descontrola,
dá apenas uma volta
sobre si mesma e chega sempre a tempo
de termos um novo dia,
onde estamos,
e vermos nascer o Sol que nos alumia
e que nos aquece?

Já viram
que a Terra oscila e oscila
e não cai, e não vira,
e mantém-se sempre na mesma rota
à volta do Sol
que alumia e aquece mais uns do que outros,
porque a Terra oscila, oscila
e não cai, e não vira?

Já viram
que ainda não descobrimos mais sóis
com terras como a nossa?
apetece-me procurar Averróis
e abaná-lo e dizer-lhe: acorda
e encontra-nos outros sóis,
outras terras, outras órbitas,
outras gentes com outra semântica,
e tira-nos desta solidão,
desta mecânica quântica
que explica a nossa dimensão,
que é tão curta, tão parca, tão assimétrica,
tão só, tão em vão

Já viram
como somos tão pequeninos,
como somos tão mesquinhos,
perante um universo imenso
com outros mundos desconhecidos,
com outros mundos também em suspenso,
como somos tão pequeninos,
tão sozinhos?

- Vira-te para nós e acredita
em Deus -,
dizem-me vozes terrenas
convictas,
- foi Ele que fez os Céus
e a Terra que tu habitas
e não faças mais perguntas,
acredita e pronto,
de que mais precisas?
és mesmo tonto
-------------------------------------- 
Hoje começa o Verão. Que tenham um bom Verão de 2014,
meus caros leitores

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Felipe VI de Espanha

Sua Alteza Real Dom Juan Carlos Alfonso
Víctor Maria de Borbón e Borbón-Dos Sicílias
(o João Carlos, cá para nós)
era o Rei de Espanha, mas já não é,
já foi, abdicou,
a partir de hoje o Rei de Espanha é
Sua Alteza Real Dom Felipe Juan Pablo Alfonso
de Todos los Santos de Borbón y Grécia
(o Felipe VI, para todos)

Se Portugal tivesse hoje um Rei,
seria o Dom Duarte Pio de Bragança,
mas não sabemos bem se seria,
é que há discussão na herança
e essa discussão
já se tornou uma questão:
"a questão dinástica portuguesa",
o que, a bem dizer, significa
que só teremos rei, ou rainha,
ou qualquer outra realeza,
depois de os candidatos ao trono
andarem à batatada,
desculpem, à real batatada,
e é bom que um real trono
tenha um real dono

Mas esqueçam isso agora,
o que interessa é que temos
um novo Rei em Espanha,
o Felipe, o Sexto,
e os reis felipes de Espanha
costumam virar o nariz e o queixo
para Portugal,
já cá tivemos o primeiro, o segundo e o terceiro,
que foram o segundo, o terceiro e o quarto deles

Meu caro Felipe VI de Espanha,
desejo-te muita saúde e sorte
e que seja longo e próspero
o teu reinado,
mas toma cuidado,
a tua Espanha são várias e diferentes
e pode desmembrar-se em repúblicas
de gentes soberanas e independentes
como já o fizeram as lusitanas gentes
há muito tempo

Mas, segundo as minhas informações,
tu vais ser mesmo um forte rei,
com fortes razões,
e vais dominar todas as espanhas
com muito empenho,
até já li vaticínios
que dizem que vais ter muito engenho
e que, de entre muitos projectos e desígnios,
estás a planear invadir Portugal,
por ser a única república da Península dos Túrdulos,
dos Fenícios, dos Cartagineses, dos Lusitanos,
dos Celtas, dos Iberos, dos Romanos,
dos Alanos, dos Vândalos, dos Suevos,
dos Visigodos, dos Árabes, dos Judeus,
dos Moçárabes, dos Vascões, dos Galegos,
dos Asturianos, dos Navarros, dos Castelhanos,
dos Catalães, dos Aragoneses, dos Valencianos,
dos Andaluzes, dos Extremenhos, dos Leoneses,
dos Portugueses ...
(quem faltar, bata à porta duas vezes)

Mas será mesmo verdade
que nos queres invadir?
Não me digas
que estão a ser instigadas por ti
as altas conspirações e intrigas
que se cruzam nos passos perdidos
do templo republicano
deste pequeno rectângulo

Vá lá, tem calma e não nos invadas,
mas se o fizeres não o faças
sem me avisares,
eu preparo tudo e não haverá azar:
com astúcia e perícia
instalo-me no trono de Portugal,
sim, eu, o Vitório Rei,
e caso-me com a tua ...
para unirmos as duas coroas
com um grande e real casamento,
não sendo preciso recorrer outra vez
às históricas bordoadas
nas nossas raias, secas e molhadas,
e, obviamente, passarei a ser eu o único Rei de Portugal,
das Espanhas, dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar
e d'O-Que-Mais-Der-E-Vier,
como o foi o nosso querido Manuel,
o Venturoso

Por lo tanto, querido Felipe,
yo te llamaré muy pronto
y prepara ya la mesa y las sillas
para nuestra próxima reunión
en el pueblo de Tordesillas
para firmar nuestro nuevo Tratado
de Unión de los Reinos de la Península Ibérica,
siendo yo El Rey e tu El Conde del Condado
de Treviño

Hasta muy pronto, niño,
adeus, adiós, adéu, agur

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Os nossos submarinos

Não tenho visto os nossos novos
submarinos,
ah! estão a dizer-me que os submarinos
não são para se ver,
são para navegar escondidos,
debaixo de água,
e se forem vistos
podem ser logo abatidos
pelos inimigos

Mas os submarinos
não se mostram à tona da água
de vez em quando?
Eu queria ver
os nossos novos submarinos,
descer às suas entranhas,
descobrir os seus segredos,
as suas rotas, os seus destinos,
como se disparam os torpedos,
como limpam os intestinos
os seus marinheiros

E também queria saber
de outros segredos:
quem os encomendou?
quem os pagou?
quem desenhou os enredos
de uma necessidade
talvez desnecessária?
quem enriqueceu
como intermediário?
e, estando provada a corrupção,
por que razão
só descobriram os corruptores?
quem são os corrompidos?
quem esconde as provas?
serão os doutores?
serão os políticos?
ou será somente quem comprou as portas?
ah! dizem-me que os submarinos
não têm portas,
nem janelas, nem frestas,
nem chaminés,
se calhar é por isso que não servem para festas,
nem para bailes no convés

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Fui ao bosque

Fui ao bosque
colher amoras,
fui ao bosque
colher flores,
fui ao bosque
colher amores,
e também fui ao bosque
para colher a paz

Fui ao bosque colher amoras
e arranharam-me as silvas,
colhi amoras e também espinhos

Fui ao bosque colher flores
e picaram-me as abelhas,
colhi flores e também dores

Fui ao bosque colher amores
e encantou-me a bruxa má,
colhi maus humores e não amores

Fui ao bosque colher a paz
e caí nas malhas de uma teia
tão peganhosa como o pez

Vim do bosque
e trouxe amoras e flores,
mas não trouxe os amores,
porque não os vi,
nem a paz;
esta ainda a vi a pairar,
mas não a consegui agarrar

sábado, 14 de junho de 2014

O Pentecostes de um contabilista

E ao quinquagésimo dia
desceram línguas de fogo
sobre o contabilista
e ele, sem saber como,
começou a subtrair da lista
as dívidas de milhões
e a inscrever no seu lugar lucros
que também desceram
em línguas de fogo
nos luxemburgos

- Foi o Espírito Santo que fez isto -
disse o contabilista,
já sem o efeito do poder
das línguas a arder

Mas desceram outra vez
umas línguas de fogo
sobre o contabilista,
e ele, sem saber como,
disse que subtraiu da lista
um montante de milhões mal gasto
e de outros milhões
de crédito mal parado,
não com o efeito das alucinações
provocadas pelas línguas de fogo,
mas por causa de umas línguas de gato
que trincou e lhe provocaram comichões
e muitas confusões

Não se riam, não se riam,
isto pode muito bem acontecer
a qualquer pessoa de boas intenções;
experimentem comer línguas de gato
com torrões de amendoim,
daquele muito salgado

Não se riam, não se riam,
e aperitivos salgados
é o que mais há,
há-os em toda a parte
e para todos os palatos,
alguns servem-se bem quentes,
outros frios, outros gelados,
uns estragam os dentes,
outros rebentam a boca,
mas são todos salgados
e se forem feitos à base de pimenta
ainda provocam mais comichão,
sobretudo se forem servidos gelados
no rabo,
primeiro sabe a refresco,
mas depois arde, é fogo, é fogo,
como as línguas de fogo

Foge contabilista, foge,
põe-te ao fresco,
dá corda aos sapatos
antes que sejas outra vez enrabado
por um aperitivo salgado
servido gelado e apimentado,
e protege sempre as tuas costas,
mesmo no dia de Pentecostes

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Meia-idade

Crise da meia-idade,
ou da idade mais do que meia,
tanto faz,
finge-se que não é,
mas é verdade,
e olha-se para trás,
mas não adianta,
nem atrasa

Crise da meia-idade,
ou da idade mais do que meia,
esmorecem-nos os músculos
e esvai-se a lucidez,
mas, ó Panaceia
porque não governas?
e porque é que os cremes para as rugas
não prestam?
nós não queremos a fealdade da nudez,
nem o sofrimento, nem as verrugas,
nem os tremeliques, nem a a rigidez
das articulações,
queremos ser sempre sãos
e belos,
até ao fim

E ai o fim, e ai o fim,
e pensamos sempre no fim
como nunca tínhamos pensado,
e o fim é o futuro,
mas um futuro com prazo
que é o fim,
e o passado passado
é apenas passado

Crise da meia idade,
ou da idade mais do que meia,
e tudo isto
porque este ser que somos
que sonha, que discerne, que anseia,
que faz o bem, que faz o mal,
é o único animal terrestre
que sabe do seu final,
melhor seria que não soubesse

quinta-feira, 12 de junho de 2014

A noite de Santo António

O Santo António é santo,
e diz o povo que merece tanto
ser santo,
que não é só santo,
é um santo popular,
e se fosse só António
não tínhamos o Santo António,
e o que seria de nós
sem o nosso querido Santo António

E eu aprovo,
o Santo António é mesmo nosso,
é um santo do povo,
é adorado, é rico,
é casamenteiro,
merece uma quadra num manjerico,
até podia ser o padroeiro
de Lisboa, mas não é,
é só santo popular
e milagreiro

Como padroeiro
o povo não destronou
o mártir São Vicente
que é de fora, de Saragoça,
mas também é cá da gente,
não por ser popular,
mas por ser mártir,
e também por ser o dono da Freguesia
de São Vicente de Fora
que nada fez até agora
para acabar as obras de Santa Engrácia

E para espairecer um pouco,
vou subir à Freguesia da Graça,
que era de Santo André e de Santa Marinha
(mais um santo e uma santa),
e que era a que tinha mais graça,
mas que, por causa da austeridade,
foi integrada agora
na Freguesia de São Vicente de Fora,
e com isto já estou baralhado,
pois não sei o que vim fazer à Graça,
nem o que estava a fazer em São Vicente de Fora
(a palavra austeridade deixa-me desorientado)

Esperem, já me recordo,
estava a falar do Santo António
(esqueçam agora o São Vicente de Fora),
que viva, pois, o Santo António popularucho
e, em honra dele, vou-me já daqui embora
e vou encher o bucho
de pipis, de moelas e de outros miúdos,
cheios de paprica e de outros unguentos,
ou de sardinhas assadas
em fogareiros ferrugentos
e cheios de carvunça,
e vou beber vinho à tripa-forra
feito das uvas das encostas da Maunça,
e que vivam todos os santos populares
e que nos perdoem esta bagunça,
que vivam todos, que nenhum morra
e que se mantenham hirtos nos altares
e que livrem Lisboa
das penas de Sodoma e de Gomorra,
e que viva a vida boa,
que viva o Santo António,
e se ainda tem milagres na cartola
que os faça aqui em Lisboa
e não em "Padova"

terça-feira, 10 de junho de 2014

Um Dia de Camões

Naquele dia de ventania
voou-me o meu chapéu,
e eu corria, e eu corria,
e não o consegui apanhar,
e assim o meu chapéu
foi parar
ao rio Tejo

E a minha cabeça ficou ao léu
no meio daquela ventania
e eu a ver o meu chapéu
a flutuar no rio Tejo,
mas que valentia,
a do meu chapéu,
só me restava dizer-lhe adeus,
mas, de repente, vi nele uma nau
e disse-lhe:

"Flutua, flutua, ó meu chapéu,
deixa-te ir sempre à tona da água,
vai para aonde te leve a maré,
mas sempre à tona da água;

Flutua, flutua, não vás ao fundo,
não fiques preso em nenhuma barreira,
vai até ao fim do mundo
e manda-me notícias dessa fronteira;

E quando passares pelo Bojador,
ou pelas Tormentas, ou pela Taprobana,
ou pelo mar da China, ou pelo mar de Timor,
anuncia que vens da ocidental praia lusitana,
terra de esplendor
e de egrégios avós que não tiveram medo
do gigante Adamastor
e do fogo de Santelmo,
e que foram além da dor
por terem cruzado o Bojador
e por não terem dado ouvidos ao Velho
do Restelo."

Mas, quando me calei,
constatei que estava fora de mim,
ainda bem que ninguém me viu ou ouviu,
afinal era apenas o meu chapéu
que flutuava no Rio Tejo,
não era nenhuma nau
preparada para navegar
para o desconhecido
e dar novos mundos ao mundo,
era apenas o meu chapéu
e que não ia ao fundo

Queiram, no entanto, saber
que eu fiquei assim
tão fora de mim e a ver
uma nau num humilde chapéu,
porque estava sozinho
à beira do Rio Tejo em Lisboa
com muita vontade de declamar,
a plenos pulmões,
o Hino Nacional, o Fernando Pessoa
e o Luís de Camões,
porque era o dia de Portugal, de Camões
e das Comunidades Portuguesas

Viva Portugal

sábado, 7 de junho de 2014

Mostrem-me

Perdi o tino
com um copo de vinho
e com mais um copo de absinto
perdi o juízo,
com um copo de vinho
e com um copo de absinto
perdi também o paraíso
e perdi também o sono
com um copo de sonho,
minto,
foi com um copo de absinto
e com um copo de vinho
que perdi o sono
e o sonho

Agora que perdi o juízo
e o paraíso
com um copo de vinho
e com um copo de absinto,
agora que perdi tudo
e que já não tenho nada a perder,
mostrem-me tudo,
que eu também vos mostro tudo,
mostrem-me o que é belo,
mostrem-me o que é o céu,
mostrem-me tudo como se eu fosse
o mais importante néctar de um doce,
mostrem-me o vosso sangue a ferver,
mostrem-me o que fazem quando se sentem a morrer,
mostrem-me como explodem quando têm prazer,
mostrem-me como comem o pão que o diabo amassou,
mostrem-me como jogam p'rá valeta a esperança do amanhecer,
mostrem-me como se alegram com o som do galo que cantou,
mostrem-me como se elevam quando caem no entorpecer
das drogas leves ou pesadas,
mostrem-me como...como...como
conseguem ter asas

Está bem,
já sei que não me vão mostrar nada,
eu também não vos mostrei quase nada,
fica tudo escondido para nosso bem,
e eu vou esperar que me passe o efeito deste delírio,
e, para a próxima, não digo a ninguém
o que me apetece ver quando alguém me dá de beber
um copo de vinho e um copo de absinto

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Chuva em Junho

Chuva em Junho
e eu de mão em punho,
quero sol, quero sol,
e tu, ó Juno,
não me ligas nenhuma,
olha que me vou para o Neptuno

Chuva em Junho
e eu quero sol,
mas os deuses não sabem
o que eu quero?
não sabem que a falta de sol
em Junho
me traz desespero?
mas para que servem os deuses
se não sabem o que eu quero?

Vou já a Delfos
para dizer ao Febo
o que não quero,
não quero chuva em Junho,
e depois vou ralhar com Hélio
porque se deixou vencer
por Tlaloc que mandou a chuva
em Junho
sem conferenciar com Zeus,
o regente dos deuses;
que Tlaloc faça chover no México,
isso é lá com ele,
mas que deixe o Febo
reinar na Europa em Junho
e em todo o Verão

Mas deuses não me faltam,
depende da mitologia e dos intentos,
e é tão extenso o rol
que só para deuses do sol
existem mais de quinhentos

Mas nenhum me vale,
está mesmo a chover em Junho,
e eu de avental
e de mão em punho,
quero sol, quero sol,
e, já agora, chuva no nabal

quarta-feira, 4 de junho de 2014

A lesão da selecção

Caros compatriotas,
serve a presente para vos declarar
que eu tenho um caldo
que pode curar
a lesão do Cristiano Ronaldo

E o meu caldo não é milagroso,
é apenas científico
e simples de fazer:
comprem cem gramas de pó orgulhoso,
um litro de vinho tinto de sabor idílico,
cem gramas de chico esperto,
meio quilo de milho grosso,
duzentos gramas do mito do encoberto,
um quilo de muita ilusão,
não ponham sal, o caldo é insonso,
nem salsa, nem cominhos, nem hortelã,
nem erva-doce, nem azeite, nem alegria,
acrescentem ainda um pouco de saudade,
quanto baste,
e misturem tudo muito bem

Deixem apurar a massa
durante três dias e três noites
e depois ponham-na a secar
ao sol numa eira bem arejada
e, depois de bem seca,
juntem-lhe uma caneca
de juros líquidos bem medida
e muitas gotas de lágrimas de gente pobre,
mas façam atenção,
não misturem lágrimas de gente rica,
porque se o fizerem resulta massapão
em vez do caldo lusitano

E é esse caldo lusitano
que pode curar a lesão
do Ronaldo, o Cristiano,
e que já ofereci à Federação

Mas, valha-me o caldo lusitano,
será que o nosso orgulho como nação
depende agora dos joelhos do Cristiano?
segundo as notícias, parece que sim,
pois, pois, afinal continuamos
a não valer nada como nação
sem um Dom Sebastião

terça-feira, 3 de junho de 2014

O pecado

Ele caminha aos tombos
porque carrega aos ombros
o fardo dos pecados,
e quanto mais peca
mais ficam pesados,
ele e o fardo,
e o pecado é, por vezes, mortal,
para quem quer ser imortal
como ele que caminha aos tombos

Mas ele terá mesmo pecado?

Depende do que é pecado
e de quem é o pecador,
dizem os esclarecidos
nos dogmas de fé
e nas normas da moral
e que sabem explicar os escritos,
e os usos, e os costumes, e as tradições,
que distinguem o bem do mal

E explicam também como é
o paraíso
onde corre o leite e o mel
e a felicidade eterna
e dizem que só entra lá quem tem fé
e não peca

Mas eu não estou esclarecido,
acho que tudo é relativo
e vejo-me aflito
para entender como é que o paraíso,
para além dos seus rios de leite e de mel,
seguramente com recantos acolhedores,
está pleno de jovens virgens
que aguardam a chegada dos fornicadores
a transbordarem de tesão
depois de ficarem em fanicos
nos terreiros dos sacrifícios,
eles e quem estava mais à mão

E eles, que rebentam bombas
agarradas ao corpo,
têm muita fé, são uns queridos,
e os seus sacrifícios são honras
para os esclarecidos
e seguidores dos mesmos dogmas

E não são pecadores?

- São, sim senhor,
porque cumprem leis de deuses vingadores -
dizem-me os esclarecidos
de outros dogmas,
e eu continuo aflito
para entender tudo isto

E ainda as fogueiras, as chicotadas,
as lapidações, a forca,
para os que pecaram segundo os esclarecidos,
tudo horrores,
digo eu que estou de fora
e a rachar lenha,
embora devesse antes rachar a barbárie,
mesmo à distância

Mas não racho,
não consigo, não tenho machado,
resta-me só saber
se o homem que eu vi derreado
com o peso do pecado,
terá mesmo pecado
- pecou, mas confessou-se
e está perdoado -
diz-me um esclarecido
- melhor assim -
respondo eu,
já quase esclarecido

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Fui à feira do livro

Hoje fui à feira do papel,
do papel encadernado em folhas,
em folhas que bem coladinhas
são um livro que é de papel,
e se as folhas estivessem soltas,
mesmo com lindas histórias,
não eram um livro,
eram apenas folhas soltas,
e as folhas soltas podem ir para o lixo,
mas um livro nunca

E os livros que vi
tinham todos palavras
que todas juntas dão uma história,
e eu esmoreço
porque não conheço
quase nenhuma,
desde a história da Matemática
à história da História,
passando pelos romances,
pelos ensaios, pela fantasia,
pelas leis codificadas,
e eu não conheço quase nada

Desesperado,
entrei na loja dos poemas
e folheei, e folheei,
pareceu-me que os conhecia,
mesmo os que li pela primeira vez,
um só poema pode não fazer um livro,
mas, por vezes, um único verso
preenche um livro,
não comprei nenhum,
fiquei só com o cheiro,
para a próxima
levo dinheiro