segunda-feira, 29 de setembro de 2014

A motosserra

A motosserra começa a serrar de madrugada
e serra e serra, sempre a gemer,
serra na encosta da serra e serra a árvore
quando lhe afinca os dentes de aço
acorrentados numa corrente que desanda
com força e sem piedade e corta
e corta o tronco da árvore e depois os ramos
e só deixa o cepo e as raízes fundas enterradas
na terra que irão germinar outra vez,
talvez

E a árvore sangra e sangra
e chora e desiste e cai catrapuz,
cai direita com estrondo
sem torcer o tronco
e a motosserra sempre a serrar
na encosta da serra
e ouve-se o seu barulho teimoso
e não desarma e faz faíscas
e serra e serra o osso
na encosta da serra

A motosserra serra e serra
e quem a comanda é o serrador
ou o lenhador ou o rachador
e agarra-a com ambas as mãos
e aguenta os seus coices
e os seus engasganços
e absorve a serradura
que lhe entra pelas ventas
e pela dentadura

E o barulho da motosserra
continuou o dia todo
na encosta da serra
e só parou e só parou
quando a noite começou,
e quando me deitei,
já noite adentro,
ainda ouvia o som da motosserra

Como terá adormecido
o serrador?

sábado, 27 de setembro de 2014

Hoje vou cavar

Hoje vou cavar,
uma cova aqui, outra acolá,
na cadência da enxada,
a de pontas, não a rasa

Hoje vou cavar
esta terra escura
esta terra de falgar,
esta terra dura
se a seca durar

Vou cavar hoje
porque já chove,
cavo, faço covas,
mas algo se move,
são as minhocas

Cavo e cavo e cavo,
e acima e abaixo
e já estou a dar cabo
do cabo da enxada,
quero antes um sacho

E o sacho também pesa,
ou está mal encavado,
vou mas é cavar daqui,
afinal sou da realeza,
alguém que cave por mim

Sim, porque eu sou Rei,
o rei galo entre os galos,
e um Rei tem que reinar,
não tem que ter calos
nem canetas para cavar

Só se tiver que dar à sola
do reino, do povo, do clero,
e se tiver, deixo o sacho e a sachola,
ó pernas para que vos quero,
cava ó Rei daqui para fora

E então diz a Rainha irada,
"para que queres a enxada?
toca a cavar, toca a cavar,
quero nabos e couve lombarda
para o almoço e para o jantar"

Coitado deste humilde Rei,
o Vitório Rei, o sorna,
para não ter que ganhar a jorna
a cavar com a enxada ou com o sacho,
tem que cavar daqui para fora

E ninguém o compreende,
é que só tem canetas para escrever
e calos no dedo onde prende
a caneta para escrever

Vá lá, deixem-se de tretas,
não obriguem o Vitório Rei a cavar,
falta-lhe a vontade de suar
e a força nas canetas

Vá lá, digam à Rainha
para deixar o Rei descansado,
até porque hoje é sábado

terça-feira, 23 de setembro de 2014

A queda de uma folha

Olá,
sou uma folha verde muito gira,
sou limbo, pecíolo e bainha,
sou aérea e simples no corte,
tenho forma ovada e sou fendida
no recorte

São várias as minhas nervuras,
sou palminérvia,
mas não sofro dos nervos,
nem de tonturas,
sou abstémia,
só bebo da seiva bruta
que, com a minha fotossíntese,
se transforma em seiva elaborada
e alimenta a minha árvore,
enfim, sou uma folha exemplar

Mas recebi ordem de expulsão,
sim, vou ser expulsa,
sem nenhuma razão,
sem nenhuma culpa
formada,
e até já estou a mudar de cor,
estou a ficar amarelada,
estou a ficar seca de dor

E a minha bainha
já quase não se agarra
ao caule da minha árvore,
estou a ficar muito fraquinha,
acho que vou cair,
e vem aí um vendaval,
ai que vou cair,
já quase não sinto o caule
que me segura à minha árvore,
ai que vou cair,
quem me agarra? quem me agarra?
ai que caio, ai que caio,
e caí,
caí no chão, caí na lama,
caí e já não me sinto,
acho que morri
------------------------------
Começa hoje o Outono de 2014

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Aquela nuvem escura

Aquela nuvem escura
seguiu-me, sempre ameaçadora,
mas em silêncio,
e despejou-me a sua fúria,
assim, de repente,
como uma esponja com o cio,
e apanhou-me de frente,
e vi-me enrolado num rodopio
de vento e de chuva grossa,
bolas de gelo esbranquiçado,
uma terrível escardoça,
um dilúvio de balas de pedraço
que metralhavam a calçada
num ritmado estardalhaço

E o meu caminho
tornou-se numa torrente
de lodo barrento
como um rio revolto,
sem margens, bruto, violento,
"credo, estará o diabo solto?"
gritei eu ao vento

E aquela nuvem escura
não parou de ralhar,
de espirrar, de encharcar,
de estilhaçar, de enxurrar

E depois parou,
nem mais um rugido,
e foi-se embora,
tão naturalmente como chegou,
o céu ficou varrido,
mas o chão não,
era preciso varrê-lo

E a revolta dos elementos
faz-nos sentir minúsculos,
pequenos,
pouco mais do que moluscos
agarrados aos penedos
batidos pelo mar,
e a revolta dos elementos
deixa-nos a gritar,
já chega, já chega, parem,
porque se não pararem
vamos parar ao mar

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Envelhecer

Anda tudo a envelhecer,
envelheces tu, envelheço eu,
envelhece também o céu
e quem acabou de nascer

- É pá, faz tempo que não te via,
estás praticamente na mesma.
- Na mesma uma ova, não vês
que envelheci e que cheiro a azia?

Anda tudo a envelhecer,
o gato, o cão e a catatua,
envelhece o Sol e o amanhecer
e as árvores da minha rua

Anda tudo a envelhecer,
envelhece o velho e a velha
que já estão fartos de envelhecer,
envelhece o zângão e a abelha

Envelhece a alma e a idade,
a cidade e a rotina,
envelhece o querer e o sorrir,
só não envelhece o que é nada,
o que não nasce, o que não germina,
o que falha a oportunidade de existir

Anda tudo a envelhecer,
mesmo quem rejuvenesce
à custa do bem parecer,
mesmo quem cresce
e julga que não envelhece
enquanto cresce

Ouçam-me todos,
não parem de envelhecer,
não parem, porque parar é morrer
isso mesmo, seus tolos,
parar de envelhecer
é morrer

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Naufrágio

Deixam-se embarcar
amontoados,
com sede, com fome,
e já enjoados,
já com cheiro a morte

E flutuam,
já em alto-mar,
na piroga da esperança,
será que vamos chegar
às costas da bonança?

E continuam embarcados
a flutuar em alto-mar,
desamparados,
os corações a espumar
e a piroga a afundar

E continuam a flutuar
em alto-mar,
mas agora afogados,
a piroga não era para navegar,
era só para iludir os desgraçados

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

O Marinho e Pinto e a Genoveva

Para aonde irá a Genoveva
assim vestida toda airosa
com a sua alcofa cor de rosa
e o que será que ela leva?

Para aonde irá aquele Pinto
com uma alcofa de arminho
e um fato de azul marinho
e gravata com tons de tinto?

Vai a Genoveva para a Suíça
ter com o seu homem trolha,
leva na alcofa broa e chouriça
e uma réstia de alhos e cebola

Vai o Pinto marinho para Bruxelas,
leva na alcofa votos e votos em vão,
e vaidade, e demagogia e balelas,
não disfarça, é um deputado da Nação

Foi-se a Genoveva e não voltou,
ficou como "femme de ménage"
e tanto limpou e tão pouco ganhou
que encheu a sua alcofa de "rage"

Mas voltou o Pinto marinho,
que não quer ser tão bem pago
como um europeu deputado
e ei-lo de novo aqui pobrezinho

E agora diz que é um rei mago
e que voltou para nos governar,
mas se já nos governa tanto gado,
para quê outro, um pinto do mar?

Vamos é pedir à Genoveva
a sua esfregada esfregona
e vamos esfregar a tromba
da bicharada que nos governa

Para aprenderem a não mentir,
para aprenderem a não roubar,
para aprenderem a não matar
a nossa esperança no porvir

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Fui aduaneiro

A fronteira é uma linha imaginária
que demarca a língua, a tribo, a nação,
os países, os estados, os clãs, a pátria,
os costumes e, por vezes, a religião

A fronteira é ruptura,
e atravessar uma fronteira
é, por vezes, uma aventura,
e eu fui aduaneiro
e controlava a fronteira,
não toda, apenas um dos seus lados,
porque o outro lado era controlado
por outro aduaneiro
que não estava do meu lado,
porque estava do seu lado

E assim é,
de um lado da fronteira está um aduaneiro,
do outro lado está outro aduaneiro,
mas afinal qual é o lado certo?
o direito, o esquerdo,
ou o que não está à vista?
"para mim, qualquer lado é o certo",
conclui o contrabandista

E eu fui aduaneiro
e nunca percebi as fronteiras,
do outro lado falam diferente,
têm mais dinheiro, têm mais gente,
têm outras maneiras,
mas no meu lado são estrangeiros
e eu no lado deles estrangeiro sou

E eu fui aduaneiro
e nunca percebi as fronteiras,
olhem os peixes, as aves,
os ratos, os cães vadios, as toupeiras,
andam sempre em viagem
e a cruzar fronteiras,
mas nunca mostram o passaporte,
nem a bagagem,
nem o seu meio de transporte

- Alguma coisa a declarar?
- Sim, eu, que sou uma coisa.
- Está bem, pode passar,
mas para a próxima vou desconfiar

E eu fui aduaneiro
e gostei,
gostei muito,
mas nunca percebi as fronteiras

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Chuva

Hoje está a chover,
está a chover e bem,
caem gotas de chuva,
gotas de água de beber
e de molhar quem
anda a apanhar a uva
já temperada,
já madura

Hoje está a chover
e o dom plúvio
não desarma,
provoca o dilúvio
e não deixa a Santa Clara
abrir o céu e mostrar
o que está por cima do plúvio,
a luz do sol a brilhar

Mas a chuva também aconchega,
e continua a chover,
desde que eu não molhe a cabeça
pode continuar a chover,
e continua a chover

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Um poema de ideias feitas

Um poema feito
de ideias feitas
não pode dizer nada de novo,
não pode dizer que um parapeito
deve ser parte de uma janela
sempre aberta para a rua,
um poema de ideias feitas
diz que essa janela é para estar fechada
e que só se vê através dela uma parede nua
quando está aberta

Um poema feito
de ideias feitas
não pode dizer "abram a janela
e vejam através dela
as maravilhas perfeitas,
o sol, a noite, a chuva, o homem,
e sintam o fulgor da primavera em flor
e o intenso aroma do pólen,
o intenso aroma do amor"

Um poema feito
de ideias feitas
diz apenas "fechem a janela
e quebrem-lhe o parapeito"

Um poema feito
de ideias feitas
não pode dizer nada de novo,
não pode explicar como pode um ovo
dar uma estrela,
só pode dizer "um ovo estrelado
sai de uma frigideira com óleo a ferver"

Um poema feito
de ideias feitas
só pode dizer que um ovo
não é redondo, é oval,
mas um ovo é fenomenal,
foi desenhado sem esquinas, sem arestas
para daí nascer uma vida,
para daí nascerem estrelas,
e um ovo estrelado
é estrelado, não por ser estrela,
mas porque não foi chocado
para dar uma estrela

Um poema feito de ideias feitas
não pode dizer que no mar
há versos imersos
que se vestem de claras em castelo
quando são dispersos
pelas ondas de espuma
e que são inspirados
por quem procura a poesia
na bruma,
na maresia

Um poema feito
de ideias feitas
só pode dizer que existe o mar
porque está lá,
ponto

E o poeta que não é livre
só pode escrever poemas de ideias feitas,
livrem-nos disso, livrem-nos disso,
e que ninguém tire
ou compre a imaginação dos poetas,
e que haja suspeitas
quando um poema inteiro
é  só feito de ideias feitas,
quem o escreveu pode estar prisioneiro

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Fui ver os aviões

O avião levanta voo contra o vento,
e aí vai o aviador e o avião
e ainda quem se aviou a tempo
de o apanhar a aviar no chão

E eu, ao vê-lo levantar, estarreço,
aquilo tudo no ar! não pode ser,
e foi apenas um jacto, um arremesso,
que o arremessou até desaparecer

E vejo outro avião a voar baixinho,
e aterra, e oscila, e vai parar,
e parou, parou suave e direitinho

Vejo aviões, mas assim não vou voar,
quero antes voar como um passarinho,
livre, a cantar e sem sinal de radar

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Não me mostrem mais sangue

A dor não tem cor,
é incolor a dor, mas a dor
dói, sufoca, e se a dor
não adormece,
mói, arde, é ardor,
enlouquece

A dor não tem cor,
mas tem o sangue
que é todo da mesma cor,
e quando jorra
não muda de cor,
seja o sangue da derrota,
o sangue do perdedor,
seja o sangue da vitória,
o sangue do herói,
mas ver sangue derramado dói,
dói muito, dói sempre,
mesmo se for sangue de herói,
porque o sangue tem cor,
é vermelho ardente

Por isso,
não me mostrem mais sangue
derramado por corpos caídos,
estropiados, desmembrados,
mortos, inválidos, vencidos,
não me mostrem mais sangue
derramado em vão,
definitivamente,
não quero ver mais o chão
molhado de vermelho ardente,
por favor, não me mostrem mais sangue
assim, derramado e ainda quente