segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Ele é um aselha

Ele abre os pacotes pelo fundo,
ele empurra as portas quando deve puxá-las,
ele corta-se nas latas de atum,
ele estraga os fechos das malas,
ele entala-se nas portas giratórias,
ele corta-se a fazer a barba,
ele está sempre a pôr nódoas,
ele detesta a gravata,
ele mastiga com a boca aberta,
ele não sabe fazer nada
com as mãos, ele não acerta
uma, perde-as todas,
ele é um verdadeiro aselha

Ele não enrosca os parafusos
a direito,
ele não sabe fazer furos
com brocas e berbequins,
ele não tem jeito
para consertar os estores,
ele dá golpes de rins
quando lhe dizem que é artolas,
ele não muda uma lâmpada,
tem medo de apanhar choques,
ele não sabe comandar o comando
da TV, da BOX, dos não me toques,
ele tem medo das tablets
e dos smartphones
de conduzir com a ponta dos dedos
na pantalha,
e dos iPod, e dos iPad
e de toda a parafernália
high-tech,
ele também não sabe pregar pregos
e foge a sete pés
das panelas de pressão
e das máquinas de lavar loiça e roupa
e do forno do fogão,
ele não conduz de marcha-atrás,
ele não sabe usar o macaco
que viaja sempre na parte de trás
do automóvel,
ele não anda de avião a jacto
e tem vertigens de arrepiar,
ele é um aselha, ele é um aselha,
ai dele se não fosse ela,
ela e elas

sábado, 27 de dezembro de 2014

As formigas

Vejo no chão um carreiro, um carreiro bem demarcado,
é um carreiro de formigas pretas, carregadas as que vão
para o formigueiro, leves as que vêm para o mercado
abastecer-se de tudo o que pode servir para o seu pão

São tantas, nunca as contei, é impossível contá-las, são
todas iguais e estão sempre numa correria, num frenesim,
e sempre a trabalhar, e não desertam e não se cansam,
e lá vai parte da seara para a sua toca de ocre carmesim

Parei e agarrei uma das formigas, que ia leve e ligeira,
ela esperneou, cheirou e acalmou, e com voz pousada
disse-me: larga-me ó monstro humano, não valho nada,
sou insecto e não tenho carne, sou uma formiga-obreira

Não como, não descanso, não durmo, ando no carreiro
todo o dia enquanto há calor, grão, palha e folhas frescas
para transportar para o meu clã, para o meu formigueiro,
e se paro sou excluída e entregue às garras das vespas

E não posso fugir, não me cresceram as asas e só sei
andar no carreiro que me marcou a formiga-rainha
a minha rainha a quem obedeço, eu e toda a sua grei,
formigas-obreiras, formigas-soldados, até a joaninha

Por isso, larga-me ó monstro humano cheio de pele
e de pêlos, larga-me, quase morro com o teu cheiro,
e eu larguei a formiga e também tomei o meu carreiro,
afinal, também sou uma formiga, uma formiga com fel

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

É Natal e confesso-me

Sim,
confesso que me limito a ser
um observador
de pessoas que vivem fora,
à margem, sem calor,
com rostos assustados
e que mostram a quem passa
sorrisos desdentados
que pedem, apenas, menos desgraça

Sim,
confesso que sou só um observador,
disfarço, observo quase sem olhar,
sim, disfarço,
finjo que não vejo e depois fico calado,
calado, mas quase a chorar,
e fico com a alma em cacos,
destruída,
mas não é com estes pedaços
da minha alma partida
que dou mais vida
aos rostos despedaçados

Sim,
confesso que sou um egoísta,
não passo frio, nem fome,
mas ao meu lado há gente
com frio e que não come,
são pessoas sem nada, indigentes,
pessoas com memórias e que têm nome,
mas só o dizem entre dentes:
- olá meu caro senhor, qual é a sua graça?
- chamam-me "o sem abrigo",
mas moro aqui,
mesmo no centro da praça

Sim,
não tenho frio, nem fome,
mas confesso que sou um egoísta,
sim, sou um egoísta
porque não chego a quem não come,
a quem tem frio,
sim, sou um egoísta,
sim, é Natal e confesso-me

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

O Inverno

Inverno, invernia,
esconde-se o melro no silvado
e foge o coelho para a toca,
a chuva bate forte no telhado
e alvoroça a galinha choca

Inverno, invernia,
fustigam os ventos nos vales
e abanam a azeitona madura,
cobrem-se as velhas com xailes
e o dia é quase noite escura

Inverno, invernia,
agasalham-se as ovelhas com lã
e muda-se a cama do seu curral,
enche-se a lagoa e cresce a grama
que alimenta o rebanho e o pardal

Inverno, invernia,
sofrem ainda mais os que estão sós
e os que se agarram à melancolia,
mas os rios chegam mais depressa à foz
e o castanheiro não verga com a ventania

Inverno, invernia,
e eu à lareira com os pés quentes
a ver o Verão nas achas a arder,
diz-me ó rouxinol o que sentes
quando não vês o sol a nascer

Inverno, invernia,
chove chuva pesada e fria,
ao menos que caísse neve
que nos daria mais alegria,
ao cair branquinha e leve

Inverno, invernia,
socorre-me ó deusa da aurora
que o meu coração quase hiberna,
manda o duro Inverno embora
e traz-me já a doce Primavera

E eis o inverno

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

O açúcar

O açúcar é doce e adoça,
e é tão bom o açúcar,
uma madalena, um queque, uma torta,
um jesuíta, um bolo de arroz, um folar,
um bom-bocado, uma tíbia, um caracol,
um pastel de nata, de feijão, de Tentúgal,
uma trouxa, um travesseiro, um ovo mole,
ai esta doçaria de Portugal,
e um bolo-rei, e um bolo-rainha,
e engole, e engole, e engole,
e sabe tão bem esta fatiazinha
de entremeio de ananás,
e sabe tão bem esta vianinha
barrada com compotas
de morango e de maracujá,
ai que sabe tão bem, ó vizinha,
e engordo, e engordas,
e engordamos a comer açúcar,
e ai a diabetes e as aortas
cheias de colesterol e de âmbar
e as tromboses e as enxaquecas
e a tensão alta e o mal-estar
e a corrida às panquecas
sem açúcar, só com erva-doce
e canela, e aos chás de cidreira
e de tília e de camomila,
mas agora venha uma barriga-de-freira
e um papo de anjo e um arroz-doce
e um leite-creme, e um suspiro,
ai que bom este açúcar com claras,
e venha também uma vichyssoise
para desenjoar,
e depois um palmier, e um duchaise
a transbordar de chantilly,
e um pão-de-ló e um pudim
na forma de alumínio,
e uma bavaroise de ananás,
e quase não sobra nada para mim,
e um doce de natas com palitos la reine,
e um molotov e umas farófias,
e filhoses e sonhos e coscorões
e rabanadas e bilharacos e tigeladas,
e tudo para enfardar aos encontrões,
e não te encolhas, e não te encolhas,
e, para terminar, um mil-folhas
e depois bebam muito chá de funcho,
ou de hortelã,
e respirem fundo, e respirem fundo,
senão ainda acordam com a cama
recheada de Encharcada do Convento
de Santa Clara,
mas não desistam, o açúcar é tão doce
e combina tão bem com tudo, com o quente,
com o frio, até com o agridoce,
ai é tão bom o açúcar, o mascavado bruto,
o refinado branco, granulado ou em pó,
e também o xarope para a tosse,
e o açúcar é tão bom e combina tão bem
com tudo, até com o champanhe,
com o cacau e com o conhaque,
e a tombar, e a cambalear,
lá vamos para a cama
dormir, talvez sonhar

Esperem,
não adormeçam já,
quero que fiquem ainda a saber
que, por causa do açúcar,
deste açúcar tão doce,
deste açúcar tão bom,
fiquei furioso, amargo,
pior que estragado,
quando me disseram
que quem corta e apanha
a cana,
a cana que dá o açúcar,
vive num barraco,
e é quase escravo,
ganha menos que um chavo,
e ainda paga a renda do barraco
à patroa,
que é rica, muito rica,
merda,
isto tem mesmo que ser assim?
merda,
revoltem-se ó escravos,
não sejam parvos,
matem a patroa,
dêem-lhe com força com a podoa
e vendam vocês a cana e o seu suco,
o suco do açúcar bruto
que me é servido refinado e branqueado

Pronto, já disse tudo,
podem adormecer

Boas festas

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

O som do tambor

Por favor,
não toquem mais nesse tambor,
já chega de som abafado,
já chega de dor,
e a marcha continua lenta
ao ritmo do tambor,
em silêncio, sem cor,
marcha lenta, não tem pressa
de chegar ao fim este cortejo
engalanado de cruzes e de rosas
desmaiadas em forma de coroas
e vem-me um desejo, um forte desejo
de colorir as rosas
e de começar a dançar e a cantar,
em vez de rezar

Não, não toquem mais nesse tambor
que dá a cadência da decadência,
do crepúsculo, do fim,
não, não toquem mais nesse tambor
com sons do pôr-do-sol
neste final do caminho

Não, não toquem mais nesse tambor,
quero ouvir um som mais alegre,
um som mais ritmado, que atenue a dor,
ouviste, ou não, ó tocador do tambor?,
mas onde estás tu? desapareceste?

O quê? ninguém tocou o tambor
neste cortejo!
mas de onde veio o som
que eu vim a ouvir e que agora
não ouço, nem vejo?
"já não estás bom",
diz-me uma voz real e acolhedora

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Auto-retrato

Não quero que se saiba
nem que se divulgue,
mas eu tenho uma papada
que me põe com uma cara
de bonacheirão quase rude,
só me falta a cabeça rapada
para parecer um almude
oco, sem nada

Papada mole
logo por baixo do queixo,
parece um fole,
e, por isso, sou feio,
mas não só por isso,
também não se nota
o meu pescoço
e sou de pouca altura
e um pouco grosso,
sim, pareço uma escultura
saída do período barroco

Contudo,
o pior é a minha papada,
e já fiz quase tudo
para a tirar, mas desisti,
e porque também sou peludo
não me apetece ficar pelado
para ir ao bisturi

Por isso,
vou deixar ficar a minha papada,
mesmo que pareça um ouriço,
quero-a apenas lapidada,
como um diamante,
quero-a a brilhar,
polida e flamejante,
e quem por mim passar
vai, decerto, exclamar
"mas que senhor elegante
ali vai"

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Diga-me quem souber

Diga-me quem souber
aonde irei ter
quando sentir que o chão
me está a fugir,
quando já não ouvir
o meu arfar, o meu coração,
quando escorregar para o abismo
do fim,
quando me enfiarem no buraco
do destino

Porventura,
ouvirei uma voz seca e cavernosa
a ordenar-me com cínica doçura
"vem, vou levar-te nesta carroça,
 fica quieto, a viagem será curta"

Porventura,
voarei nas asas de um querubim
depois de passar pela sepultura
apenas para tirar o bilhete de ida
para uma viagem celeste sem fim

Porventura,
serei separado em dois,
um ficará a chamejar,
o outro aguardará o depois,
o que vier a reencarnar

Porventura,
algo fará parar o meu coração
e nada a fazer, não tem cura,
e depois nada, e depois nada,
apenas um corpo, um corpo vão

Porventura... Porventura...
não, não adianto mais hipóteses,
não, não me consumo mais,
mas se alguém souber,
por favor, diga-me,
mas não me consumo mais

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Os moinhos de vento que não são de pedra

Os moinhos rodam e rodam
no alto dos montes,
rodam e rodam com a força
do vento a soprar,
mas estes moinhos não são de pedra,
nem têm pequenas janelas
nem mós a rodar, a rodar
e a esmagar o cereal da terra,
transformando-o em farinha e farelos

Sim,
estes moinhos são moinhos de vento,
mas não têm velas de pano
desfraldadas ao vento,
as velas destes moinhos são pás de aço,
de aço fino e leve, e giram e giram,
e são de tanto comprimento
que se não saíssem do transferidor e do compasso
nunca se mexeriam com a força do vento

Sim,
estes moinhos são moinhos de vento,
e também produzem energia,
não a que resulta da farinha alimento,
mas a que resulta das turbinas em movimento,
energia limpa, ainda bem

Mas estes moinhos de vento
não são como os meus velhos moinhos
redondos e de pedra com as velas
desfraldadas ao vento
e com o moleiro atento aos sons miudinhos
dos búzios a assobiarem e a anunciarem
a intensidade do vento

Sim,
são moinhos de vento modernos
que produzem energia limpa,
ainda bem que os temos,
mas não são os meus moinhos de vento,
não, com esta envergadura
não são os meus moinhos de vento,
chamem-lhes antes ventoinhas gigantes,
como reagiria a elas o Cavaleiro da Triste Figura
de Miguel de Cervantes?

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

A natureza do homem

O sexo e a natureza
são os motores do homem,
o sexo dá prazer e reproduz
e a natureza dá-lhe a luz,
o belo e o que ele bebe e come

Mas o homem quer mais,
ele trabalha para isso,
mas podia não fazer nada:
ele tem que comer,
a natureza o dá,
ele tem que beber,
a natureza o dá,
ele tem que se aquecer,
o natureza o faz,
ele tem que dormir,
o sono o satisfaz

E ele podia viver em paz,
mas não consegue,
porque quer sempre mais

Mas porque quer o homem
sempre mais?

Porque o homem discerne,
é inteligente,
e por isso é diferente,
se fosse animal só de sexo,
só de comer, só de beber,
só de dormir,
seria um animal menos complexo,
comeria e beberia apenas do que havia
e chegar-lhe-ia

Mas não chega,
o homem quer mais, sempre mais,
e, por isso, inventou deuses e demónios,
o bem, o mal e os demais,
as guerras e os ódios,
a escravatura e o trabalho,
as armas e os clãs,
as pátrias e os territórios,
a política e a esperança,
o dinheiro e a artimanha,
a inveja e a vingança,
e não lhe chega,
e não lhe chega tanta abastança

E depois morre
e julga que hiberna,
e o homem quer sempre mais,
vejam, ele até quer a vida eterna!
e o que ele faz,
e o que ele não faz,
para ganhar a vida eterna,
a vida eterna de sorriso,
de prazer, de felicidade,
nos jardins etéreos do paraíso,
e o que ele faz e não faz para isso!

Isto tudo
porque o homem discerne,
é inteligente,
mas, seguramente,
o homem não é mais do que um acidente
da natureza

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Cantiga a um passarinho que perdeu tudo

Que se passa ó passarinho
que estás a cantar
assim tão baixinho,
assim tão quietinho?

Perdi a voz,
perdi o meu ninho,
perdi o pio e a alegria,
perdi o calor
e o meu amor

Mas ó passarinho
arrebita,
o sol já nasceu e não faz frio,
arrebita,
afina o teu pio
e canta, e canta, e grita

Não consigo,
tiraram-me tudo, perdi tudo,
já não me sai a voz,
tiraram-me tudo,
deixa-me, quero ficar só