sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

A criação

No princípio era o caos,
a água, o ar, o fogo, o barro,
tudo misturado,
tudo quente,
tudo caótico,
mas o caos começou lentamente
a transformar-se em caldo amniótico,
começou a arrefecer,
a ganhar consistência,
o ar separou-se da água a ferver,
o barro começou a endurecer,
o fogo isolou-se no centro
da bola de terra que estava a nascer,
a nascer e a envolver-se
na luz e no calor do sol,
o ar tornou-se mais rico, mais leve,
tornou-se atmosfera
cheia de nuvens que deram chuva,
muita chuva, muita chuva,
que lavou o barro que ficou mais terra,
que arrefeceu a água a ferver
que ficou salgada com espuma,
já mar,
tudo sem nenhuma pressa,
tudo com muito vagar,
a terra,
o mar

E depois o mar pariu um verme,
um verme de barro, de água, de fogo,
um verme anfíbio
que sabia a sal e a choco,
era hermafrodita e vinha com o cio,
obviamente, reproduziu-se

Reproduziu-se e começou a vida,
a vida animal
que terá atingido a sua perfeição
quando, depois de muitos milhões de anos,
apareceram uns chimpanzés
a caminhar na vertical
assentando no chão da Terra
apenas a planta dos pés

Eles caminharam e continuam a caminhar
com os pés assentes na Terra,
multiplicaram-se por muitos
e tornaram-se especiais,
começaram a pensar, fabricaram intuitos,
tornaram-se guerreiros, inimigos mortais

E continuam assim, a caminhar,
a pensar, a guerrear,
andam sempre na vertical,
nisso são todos iguais,
mas a morte ainda os torna mais iguais,
leva-os a todos na horizontal,
por agora, um de cada vez,
um dia, no auge do mal,
todos de uma só vez

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Penamacor

Há muitos anos subi a Penamacor,
era domingo, a tarde entardecia
e os penedos ainda luziam calor,
era um Verão quente que não arrefecia

Transportava na bagagem roupa, trabalho
e o choro de uma filha recém-nascida,
à noite chorei, não estava no meu borralho
e para dormir tinha uma cama vazia

Mas Penamacor fez-me seu prisioneiro,
não no presídio, mas na torre do Castelo,
e com a artimanha de um feiticeiro

Mostrou-me as terras de entre o Coa e o Tejo,
nunca mais me libertei desse cativeiro,
fiquei agarrado ao que há de mais belo

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Levanta-te, rapaz

Levanta-te, rapaz,
lava a cara, rapaz,
já é manhã e tens outro dia pela frente,
lava os dentes, rapaz,
faz a barba, rapaz,
lava também a tua mente

Lava o corpo, rapaz,
lava o cabelo, rapaz,
os suores da noite deixaram-te manchado,
seca o corpo, rapaz, e veste-o,
veste-o com o fato de príncipe alado

E agora mira-te ao espelho, rapaz,
vês, não te falta nada para voares,
vai, vai, levanta voo, rapaz,
alimenta o teu espírito sedento
lá nas alturas,
voa alto, mas tem cuidado com o vento
e não aterres com amarguras

Deita o teu corpo, rapaz,
benze-te com água benta
e acalma a tua alma,
hoje foste principezinho no teu planeta
e estás muito cansado,
amanhã é outro dia, talvez
voltes a ser príncipe alado,
dorme bem

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Refúgios da guerra

Silhuetas, sombras, vozes em silêncio,
figuras pensativas à luz das velas,
choro de crianças, cheiro a incenso,
milhares de casas de lona sem janelas

São os refugiados das guerras atrozes,
fogem da pólvora, das balas, das explosões,
fogem dos homens guerreiros, dos seus algozes,
vão para algures só com trouxas e ilusões

Fogem do horror, do mal, do cruel destino,
e amontoam-se em campos cheios de lama,
de lágrimas, de frio, e mirem o menino

De olhar aflito que implora, que clama
por pão, por calor, por um pouquinho de mimo,
por que razão arrasaram a sua cama?

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Labaredas no Dia das Cinzas

Ó labaredas de maus agoiros,
não me queimem,
queimem esses madeiros
de sândalo do Jardim do Éden,
mas não me queimem a mim

Ó labaredas ateadas
pelo fogo eterno
que consome as achas
empilhadas do céu ao inferno,
fogo etéreo e terreno,
não me queimem,
não me transformem em pó,
nem em braseiro,
beijem-me, beijem-me só,
eu sou benfazejo
e não mereço o fogo,
o fogo do inferno

Ó labaredas eternas,
queimem antes aqueles
que pregavam nas igrejas
o fogo do inferno
quando eu era pastorinho
das minhas ovelhas,
do meu cordeirinho,
e ai de mim, ainda menino,
se não fosse obediente,
penitente, crente, temente,
iria arder para sempre
no fogo eterno do inferno

Ó labaredas eternas,
queimem antes aqueles
que continuam a vender
infernos e paraísos,
uns a a mentir,
outros fardados de negros profetas
carregados de explosivos
e de mórbidas promessas
(tens trinta e três virgens
à tua espera no paraíso),
ó labaredas eternas,
queimem antes esses,
não me queimem a mim

Labaredas no Dia das Cinzas
e eu a arder de fúria
por não entender
nada desta balbúrdia
de religiões, de dogmas, de deuses,
não entendo nada, mas apetece-me dizer
que se o homem não sustentasse deuses,
nem endeusados,
talvez houvesse mais paz,
talvez andássemos menos angustiados

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Eu, o meu irmão e o nosso burro

Naquele dia
eu ia a cavalo no burro
e o meu irmão atrás
a picá-lo,
arre-burro, arre-burro,
e o burro aos coices
e eu, ainda pirralho,
a agarrar-me à albarda
para não me estatelar
na estrada de cascalho

Ai que engraçados,
berravam os homens da aldeia
tontos de vinho e de caldos de couves,
feijões, abóbora e nabos,
caldos bem salgados e besuntados
com toucinho amarelo
e couratos ainda com pêlo

E eu, ainda um pirralho,
sentia-me mal a cavalo no burro
em cima de uma albarda
já rota por tanto uso,
e aqueles homens a fazerem pouco,
a fazerem pouco de mim,
e eles riam-se, e riam-se, e riam-se,
e eu a cavalo no burro
quase a chorar,
isto tudo num dia de entrudo,
e mais ninguém naquela aldeia
jogou o entrudo naquele dia,
só eu, o meu irmão e o nosso burro

sábado, 14 de fevereiro de 2015

A paixão

A paixão é choro sem lágrimas,
quase faz parar o coração,
é uma dor permanente,
provoca calafrios, muita emoção
e aqueles vácuos no ventre

Faz-nos ansiar por alguém,
leva-nos para longe, para bem longe,
faz-nos voar, sonhar,
faz-nos sentir bem,
mas, ao mesmo tempo, mal,
muito mal,
se o outro não vem

A paixão é angústia, satisfação,
amargura, amor, impotência,
um abafado arquejo,
é uma partida do coração,
por ele, a paixão obedece ao desejo
numa quase demência

A paixão é vida, muita vida,
mas a sua chama é uma miragem,
porque se alimenta de fantasia,
porque se extingue à primeira aragem
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Hoje foi o dia dos namorados

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

- Momentos de uma viagem -
Alta velocidade

Atravesso a meseta a alta velocidade,
meseta seca, quase um deserto,
contemplo-a desta janela a alta velocidade,
e esta meseta é da minha península,
este canto ibérico
cercado por montes e mar,
mas esta alta velocidade
não me leva ao meu cantinho
desta minha península,
fica só a meio do caminho

Para o meu cantinho
irei a baixa velocidade,
e só de noite,
irei às curvas e às apalpadelas
para o meu cantinho
que voltou a fechar as janelas
ao progresso do caminho de ferro,
que voltou a perder o comboio,
que continua pobrezinho,
mesmo assim, muito me alegras
meu cantinho

Até amanhã

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

A Pauta Aduaneira

A Pauta Aduaneira tem secções, capítulos,
posições, direitos aduaneiros e regras
de interpretação que motivam conflitos,
divergências, pleitos e outras refregas

No Capítulo Um cabem os animais vivos,
no Noventa e Sete, todas as antiguidades,
no Quarenta e Nove, o papel e os livros,
no Noventa e Três, as armas e suas partes

Não há mercadorias que não caibam nela,
mesmo as não especificadas no contexto,
e saibam que é tarefa árdua saber lê-la

Ela é universal, na forma e no texto,
e a União Europeia nada é sem ela,
a sua Pauta Comum, até no proveito

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

- Momentos de uma viagem -
A vous de jouer

J'arrive à la Gare de Montpellier
et j'écoute le son d'un piano
et la voix d'un chanteur
qui chante en falsetto

Je monte les escaliers
de la Gare de Montpellier
et les voilà:
un piano et le message "à vous de jouer"
et quelqu'un qui joue et qui chante
et qui touche mon cœur,
et je m’arrête à Montpellier
pour écouter de la musique,
de la musique qui me fait pleurer,
qui me fait rêver,
à Montpellier,
et pour cause, j'ai raté
mon train pour Perpignan
annoncé à la voie B

Mais j'ai d'autres trains
pour Perpignan,
pour "L'Estació de Perpinyà,
el Centro del Món,"
comme disait Salvador Dalí

A bientôt, Perpignan

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

- Momentos de uma viagem -
Nice

Aqui estou nesta cidade
que tem mar e praia
onde agora passeio,
praia de areia grossa,
cada grão é um seixo,
e, não fosse um estreito
que une este mar ao oceano,
esse imenso mar aberto,
este mar estaria fechado,
talvez ainda mais quieto,
mais charco

Aqui estou,
e não sei porquê,
poderia estar noutro lugar,
mas estou aqui,
estou aqui simplesmente a ver o mar,
a ver o que toda a gente vê,
mas estaremos mesmo a ver o mar?
onde estão as ondas?
onde estão os "pinguins" a surfar?
onde estão as maresias?
onde está a espuma a borbulhar?
onde estão os cheiros a iodo?
as marés cheias? as marés vazias?
os ventos do norte? o uivar medonho
dos rigores das invernias
a fustigar as falésias?
as praieiras a cantar "não vás ao mar tóino"?

Não, este não é o meu mar,
não, este não é o meu mar

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

- Momentos de uma viagem -
Os desembarcados de Lampedusa

Ferrovie dello Stato, Milano Centrale,
edifício colossal,
imenso, imponente,
mas é feio, muito feio,
por dentro e por fora,
tem muitos comboios e muita gente
e, num recanto, vejo
muitos jovens e crianças na fila
para receberem um pão com queijo
e uma garrafa de água,
têm rostos tristes e desamparados,
estão em silêncio,
eles são os desembarcados
de Lampedusa

Na parede desse recanto
está afixado um mapa da Europa
e alguém explica as suas fronteiras
e como seguir a rota
para o este, para o oeste, para o norte,
mas talvez ainda ninguém lhes disse
que para se sair dali, daquele forte,
é preciso atravessar túneis, muitos túneis,
para se atingir o este, o oeste, o norte
desta Europa confusa
que não sabe como enxugar as lágrimas
dos desembarcados de Lampedusa

E que me valha a minha alma lusa
moldada na diáspora e na saudade
para conseguir entender as desventuras
destes desembarcados de Lampedusa,
saltem daí, vão de assalto, vão às curvas,
cruzem os vales e os montes,
saltem, saltem, saltem