segunda-feira, 30 de março de 2015

Partir

Gostava de partir em silêncio
num dia de chuva
envolto numa nuvem de incenso,
de nevoeiro, de bruma,
gostava de embarcar no tempo
e navegar sem rumo
através do mar imenso
e acostar somente
quando o meu pensamento
precisasse de assentar
apenas por um momento
para se eternizar em alimento
de viagens feitas só de partidas,
de viagens em que chegar
e partir é o mesmo momento,
de viagens em que não se parte
de lado nenhum,
de viagens em que não se chega
a lado nenhum

Gostava de partir de um cais suspenso
que não tocasse este chão,
este chão de onde sou,
assim embarcaria no tempo
sem partir de lado nenhum,
mas dizem-me que um cais suspenso
tem que ter um ponto de apoio
no chão,
mas eu quero partir em suspenso
daqui onde estão
as minhas raízes e o meu berço,
eu quero partir sem tocar neste chão,
quero partir, mas em suspenso

Sim, quero partir em suspenso,
mas sei que assim não posso partir,
portanto, vou ficar,
fico agarrado ao chão a que pertenço,
fico, mas fico a viajar

sexta-feira, 27 de março de 2015

Ser resiliente

Na minha aldeia,
as gentes não falam de outra coisa,
só falam da resiliência:
faz frio, há que ser resiliente;
não chove, há que ser resiliente;
chove de mais, há que ser resiliente;
não tens emprego, tens de ser resiliente;
no domingo não há missa, o pároco não é resiliente;
a geada queimou os grelos, faltou-lhes a resiliência;
as cabras da Emilha comeram os nabos
da Patrocina, esta tem de ser resiliente

Tive que ter alguma paciência
para perceber por que razão
aquelas gentes falam em resiliência
como se fosse pão

Teriam assistido a alguma peça de teatro
no salão da capela?
Teriam assinado algum vantajoso contrato
para deixarem extrair a resina da floresta?

Mas percebi o que se estava a passar,
é que o Ti João,
aquele que tem muito para gastar,
foi ao balcão
do seu banco habitual,
que agora até lhe chamam Novo,
para levantar os juros do seu capital,
e disseram-lhe para ter calma,
nem há juros, nem há dinheiro,
o senhor perdeu tudo, comprou papel comercial
do grupo BES
e agora nem para limpar o traseiro
ele lhe serve

E, para que não caísse doente,
aconselharam-no a ser resiliente
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Viva o Dia Mundial do Teatro

terça-feira, 24 de março de 2015

Os ossos de Cervantes

Ó vós que tendes como ossos do ofício
mexer nos ossos dos outros,
não me temais, venho em paz e sou pacífico,
sou o espírito de Miguel de Cervantes,
estou no céu há muitos anos
e estou em paz com a minha Dulcineia,
por isso, imploro por Deus a todos vós,
não mexam nos meus ossos,
não quebrem esta teia
de filamentos de ouro
que me agarra à vida eterna dos errantes
cavaleiros que procuram um tesouro
escondido nas entranhas dos amantes

Não, não mexam nos meus ossos,
ainda ressuscitam Sancho Pança,
o meu escudeiro de confiança
e mestre dos preguiçosos,
o escudeiro mais gordo
e mais inteligente de toda a Espanha,
que comia tudo o que lhe davam como refeição,
ao contrário do seu amo que era só pele e osso,
o D.Quixote de la Mancha, um colosso,
um cavaleiro andante que morreu de paixão

O Sancho Pança
também vive aqui no céu
e está sempre a dormir,
mas ai de mim se ele acorda,
fará um grande escarcéu,
só se calará quando for governador da sua Ínsula,
e já não lhe basta uma pequena,
tem que ser uma grande, uma Península

Não, não mexam nos meus ossos
que eu digo-vos onde está o famoso
cavaleiro da triste figura,
o D. Quixote de la Mancha,
ele também vive no céu,
mas há muito que o não vejo nesta planura,
deve andar em viagem pela Mancha,
dizem que o têm visto por lá com o seu elmo
e com a sua armadura,
coitada dessa amável criatura,
se andar por lá tem que andar a pé,
o seu Rocinante morreu de anemia
e não teve lugar no céu,
tinha a alma vazia

Não, não mexam nesses ossos,
os meus ossos,
eles já estão muito porosos,
armem-se antes em quiromantes
e mirem só as minhas mãos
que estão nesse fosso
e digam-me: será que voltarei a ser Miguel de Cervantes
de carne e osso?

domingo, 22 de março de 2015

Mensagem de um amigo

Não te canses comigo,
amigo,
não escutes as minhas lamúrias,
as minhas histórias,
as minhas dúvidas

Não acaricies o movimento vicioso
da minha espiral confusa
que me obriga a ser ansioso
e a entrar em ruptura

Amigo,
não percas o teu tempo
comigo,
deixa-me estar aqui ao relento,
neste meu abrigo,
quero estar só,
quero apenas a companhia do vento

Mas não me esqueças, amigo,
sabes, o amor tem sexo e idade
e não sobe à eternidade,
só dura enquanto dura,
mas a amizade, ai a amizade,
essa dura e dura, e quando é pura
perdura, e perdura, e perdura

sábado, 21 de março de 2015

Voltou a Primavera

Brotam os desejos da terra húmida
grávida de húmus e de sementes,
é uma explosão de cores, de vida,
avivada pelas aragens quentes

Esvoaçam os pardais entre as copas
das árvores já vestidas de folhas,
coaxam as rãs, mostram-se as poupas,
cucula o cuco, gemem as rolas

Abrem-se as flores aos colibris
e às abelhas, ganham força a hera
e o enleio, molha-se o arco-íris

A mim, volta-me o desejo e a quimera
de voltar aos meus sabores pueris,
de ter mais graça, de ser Primavera
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Viva a Primavera de 2015
Viva o Dia Mundial da Poesia

sexta-feira, 20 de março de 2015

Eclipse do Sol

Mas de onde veio este ovo
que se pôs à minha frente
e que me impede de ver o povo
que vive no meu planeta Terra?,
foge daí seu estorvo,
não passas de uma bola de pedra
escura como um corvo,
não basta roubares-me a luz
e armares-te em luar?,
vai-te, até parece que tenho um cisco no olho,
vai, vai passear

Ó Sol, ouve lá, meu,
tipo, estás para aí a resmungar
para quê?
Eu sou a Lua, a filha do Azar,
controlo na Terra as marés
e curto bué fazer-te zangar,
empurra-me com os pés,
se fores capaz

Entretanto, na Terra,
reuniram-se os astrólogos e os astrónomos:
este sinal do céu anuncia uma grande guerra
e o Apocalipse,
concluíram os astrólogos;
não, não é isso,
isto é só mais um eclipse,
mais um eclipse do Sol,
concluíram os astrónomos;
também se juntaram muitas velhinhas
no adro da capela da Nossa Senhora do Ó
a louvar mais um milagre do Sol,
acenderam muitas velinhas
e rezaram pelas alminhas
que estão no Purgatório,
que o Sol as leve mais depressa para o céu

quarta-feira, 18 de março de 2015

Dissuasão nuclear

Eu, Francisco Holanda,
e o meu vizinho do outro lado do Canal,
o David Camarão, dissuadimos como Deus manda,
temos quinhentas cabeças nucleares
com validade até dois mil cento e tal,
podem mandar pelos ares
mais de cinco mil hiroshimas,
alguns dos nossos submarinos
estão equipados com mísseis,
tendo cada um três daquelas cabeças,
se os dispararmos, atingirão até seis mil
quilómetros, e poisarão, direitos ou às avessas,
no sítio que se definir,
e depois explodem:
oh, oh, oh, oh, oh, ohou,
vejam como é belo
aquele clarão que se transforma em cogumelo,
oh, it´s so beautiful the mushroom cloud,
oh, comme il est beau le champignon nucléaire

E tu, Buraco O'Bama,
dissuades com cinco mil cabeças nucleares
prontas a virem-se sem qualquer esforço,
dominas os ares e os mares,
a tua armada terrestre é um colosso,
admiramos-te, és o mais forte, não te faltam dólares

E eles, os russos e os amarelos,
dissuadem com dez mil cabeças nucleares,
algumas já estão com bolor
e outras com farelos,
é da humidade e das tempestades,
também da falta de calor
nas estepes, tundras e taigas,
mas deixemo-nos de cuidados,
se elas explodirem por falta de manutenção
explodem só lá e deixam tudo em cacos,
não restará nada, só o chão,
morrerá tudo o que mexe,
até os ursos que andam por aquelas bandas,
os brancos, os pardos, os pandas
e os de neve

Funciona assim a nuclear dissuasão,
nós temos, tu tens, eles têm,
temos muitas armas nucleares,
umas de plutónio, outras de plutão,
mas os outros não as podem ter,
não podem, não, não e não,
nem Israel, nem a Índia, nem o Paquistão
e muito menos a Coreia do Norte e o Irão,
o quê, ó Buraco? dizes-me que já as terão?
credo, já estou a ter medo, a tremer,
é que nós só as queremos ter
para se saber que as temos
e só as usaremos
como último recurso para nos defendermos,
nunca servirão para atacar,
enquanto os outros querem-nas ter
apenas para matar

O quê? Não estão a perceber?

domingo, 15 de março de 2015

Hoje fui à praia

Hoje fui à praia,
é verdade, hoje fui à praia,
pisei a areia e beijei o mar,
depois andei até me cansar,
sempre à beira do mar

Sempre à beira do mar,
sempre a andar, sempre a pensar,
mas por que razão o pensamento
está sempre a pensar?

Está sempre a pensar
o pensamento,
e também anda,
anda para trás, anda para a frente,
anda no momento

Hoje andei na praia
sempre à beira do mar
a pensar,
pisei a areia e muitas conchas,
as conchas que o mar deita fora,
não as quer, estão ocas

Hoje andei na praia
e espantei as gaivotas,
fugiram todas,
só não fugiu uma, estava morta

Hoje fui à praia,
respirei mar, respirei Costa

sexta-feira, 13 de março de 2015

Esperança

Quando uma voz profunda e abafada
te diz para desistires do teu ser;
Quando falas e não te sai a palavra;
Quando te saem lágrimas a ferver;

Quando só tens muralhas à tua frente,
muros altos que não consegues transpor;
Quando não aguentas o sol nascente;
Quando te consomes na chama da dor.

Quero que saibas que a vida é uma viagem;
Que as noites vestem os dias de escuro,
mas não calam os risos de uma criança;

Que sopra dentro de nós uma mensagem
que nos obriga a crer num melhor futuro;
Que a esse sopro chamamos esperança.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Cantiga a um desafinado

É mesmo verdade,
nasci sem diapasão
e sou desafinado,
tenham dó do meu coração

Sou desafinado, que vergonha,
quando os sons das notas musicais
passam pelas minhas cordas vocais
sofrem uma entorse e a minha sanfona
é um repertório de sons disfuncionais:
o dó sai-me aos bocadinhos;
o ré lembra o mé-mé
tremido dos cordeirinhos;
o mi soa a um falso ré;
o fá não me sai;
o sol não nasceu para eu o cantar;
o lá ainda vá lá que não vá;
o si é-me impossível;
o dó, outra vez o dó,
tenham dó de mim,
as minhas harmonias vocais
soam desamparadas, é um chinfrim,
não me culpem

A cantar sou vesgo, como Estrabão,
mas gostava tanto de cantar afinado,
nem sequer o "ó malhão, malhão"
me sai bem,
quero o ré e sai-me o mi bemol,
mas gostava tanto de cantar afinado,
dó, ré, fá, sol, lá, si, dó,
faltou-me o mi,
tenham dó, tenham dó de mim,
vou tentar outra vez, "ó malhão, malhão",
não deu, não deu,
nem sequer o "ó malhão, malhão",
não me culpem,
ouçam antes o que o poeta cantou:
"no peito dos desafinados também bate um coração"

sábado, 7 de março de 2015

O teu sol

Se alguém te perguntar se gostas do sol,
diz que não, ou então diz que gostas só
do teu sol que não é o mesmo sol

De que os outros gostam, é mais pequeno,
é diferente, consegues guardá-lo no teu peito,
no teu bolso, vai para todo o lado contigo,

O teu sol não se põe de noite, está sempre vivo,
guarda-o, não o apagues, acaricia-o,
alimenta-o, e se ele quiser fugir para o céu

Convence-o a esperar por ti,
diz-lhe que ele é só teu

quinta-feira, 5 de março de 2015

Em São Martinho do Porto

Naquela tarde em São Martinho
o tempo voltou-se para mim a sorrir
e mostrou-me o meu corpo de menino
a rebolar na grande duna de Salir

Naquela tarde em São Martinho
tive saudades de mim, menino,
quando via as traineiras cheias de sardinha
a entrarem na baía à tardinha

Naquela tarde em São Martinho, ao pé do mar,
quis voltar a ser menino,
mas o tempo disse-me que não, nem pensar,
fiquei triste, descoroçoado, sozinho,
ainda tentei auscultar o mar,
mas não percebi o seu linguarejar

E o sol, o que me dirá o sol?
virei-me para ele, mas nem o pude olhar,
encadeou-me, cegou-me, não teve dó,
nem sequer me deixou falar

Acabou a tarde em São Martinho,
a noite invadiu a baía em sossego
e não ousei pedir à lua para me alumiar
quando ela se anunciou de mansinho,
aconcheguei-me na minha concha triste e quedo
e pus-me a cismar,
senti-me menino a ansiar por um brinquedo

segunda-feira, 2 de março de 2015

Engoli um caroço

Ontem,
engoli um caroço,
um caroço de azeitona
e ainda não sei onde se encontra
esse caroço,
talvez no estômago,
ou ainda no pescoço,
ou já foi para o intestino,
o delgado,
porque se já tivesse ido
para o grosso,
já estaria no fundo do poço,
o seu destino

Mas engoli um caroço,
e logo um caroço de pau,
se fosse um caroço de doce
já teria passado pelo canal,
ou teria sido absorvido
pelo meu fígado
e transformado em energia natural

Mas o que eu engoli
era um caroço de azeitona,
socorro,
engoli um caroço
de azeitona
e ainda não está no fundo do poço,
no fundo da fossa

Esperem,
porventura já lá estará
a derreter,
talvez ele tenha passado
pelo tal canal
sem eu o sentir, sem eu o ver,
pronto, já estou mais descansado