sexta-feira, 26 de junho de 2015

Os cavalos à solta

Os cavalos à solta trotam a caminho
da pradaria
e assustam a lebre, o arminho
e o rio que, correndo veloz entre a penedia,
parece que tem pressa de chegar ao destino

Os cavalos à solta
cruzam-se com os bisontes
que também andam à solta,
mas que brutamontes,
relincham os cavalos,
assustando os castores
que estavam de amores

Os cavalos à solta são livres,
só carregam a sua energia
e galopam ligeiros com alegria,
são felizes

Os cavalos à solta
não têm cavaleiros, nem cavalaria,
nem donos, nem patrões,
nem ferraduras, nem pitons, nem selins,
nem colares, nem rédeas, nem arreios,
nem cabrestos, nem palas, nem cabeções,
os cavalos à solta andam nus

Hoje acordei com a cama revolta,
estava a sonhar que era um cavalo à solta

domingo, 21 de junho de 2015

Aquele jacarandá

Aquele jacarandá
que vive naquela rua
está cansado e já não dá
flores em Junho,
aquelas flores roxas ou azuis
que lembram sinos a badalar,
tlim, tlão, tlim, tlão,
ou grafonolas a tocar
a cantiga do Verão

Aquele jacandará esmoreceu
e já não se pinta de cores,
será que morreu?
ou será que se aborreceu
com os seus amores?

Ergue-te, ó meu jacandará,
não te inclines para o chão,
olha bem para cima, para o ar,
e respira fundo este novo Verão
que já está aí a aquentar,
ergue-te, ó meu jacandará
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Viva o Verão de 2015

sábado, 20 de junho de 2015

Afastem-me

Afastem-me da força das palavras,
da força dos segredos,
da força dos medos,
afastem-me do alcatrão das estradas

Quero subir este rio de margens bravas
que me tira a calma,
que me enche de lama,
quero derrapar nas suas fragas

Quero esgotar-me na minha margem,
estou velho, estamos velhos,
e não quero mais conselhos,
quero apenas uma mochila e uma viagem

Hoje acordei assim, amanhã estarei melhor

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Já não há petróleo

Ontem foi extraído o último barril de crude
do manto da Terra, um beduíno carregou-o
no dorso do seu camelo e levou-o para o sul,
seguindo a caravana da sua tribo que deixou
os arranha-céus que quase picam o céu azul
aquecido pelo deserto, mas que mundo louco

A mama da Terra secou, acabou-se o petróleo,
gritam os humanos que não vivem na selva,
acabou a força do gás, da gasolina, do gasóleo,
os aviões não voam, os aeroportos são relva,
as cidades são desertos de cimento e de ódio,
em Londres, os rolls-royce andam a erva

Enchem-se as vielas de cavalos, mulas e jumentos
a puxarem carros, carroças, barcos com rodas,
a palha está muito cara, todos os dias há aumentos,
ninguém limpa as ruas, estão cheias de bostas,
nas auto-estradas, nas pontes, nos cruzamentos,
não há camiões, carrinhas, automóveis, motas

Já não há energia nuclear, foi à falência,
falta espaço seguro para guardar os detritos,
um problema sem solução, diz a ciência,
a pilha solar falhou, assim como todos os mitos
de energia barata, inesgotável e de muita potência,
como vai o bicho-Homem manter os seus hábitos?

Coitado, ainda tem luz, vem do carvão, do vento,
da força dos rios, mas só dá para alumiar
a noite dos becos e dos que vivem ao relento,
não aquece, não arrefece, não faz movimentar
nada, nem os comboios, parece que o tempo
voltou para trás, mas não, só está a mudar

Coitado, o bicho-Homem está muito mais fraco,
há mais doenças, menos curas, as juntas de bois
voltaram para lavrar os campos, mas não há pasto
para alimentar as bestas, o Sol aquece por dois sóis,
mas o que é que está a acontecer neste terreno astro?
É a Terra que está a tirar da sua face os bichos-homens

Ela cedeu-lhes o ar, o mar, o solo, o subsolo,
os rios, os lagos, as florestas, deu-lhes tudo
o que eles precisavam para viverem no seu colo,
deu-lhes outros bichos, era um belo mundo,
deu-lhes as boas-vindas, luz, calor e consolo,
mas eles estragaram tudo, não merecem o futuro

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Meu rico Santo António

Este ano não há manjericos
no Santo António,
também não são precisos,
não passam de um mito urbano
que só alimenta quem é pacóvio,
é evidente que eles cheiram a engano,
a trapaça, a ratos perfumados, é óbvio
que o manjerico é um mito
que só deita cheiro durante cinco
minutos e, ainda por cima, não cresce,
ou seja, o manjerico
não presta, não serve,
nem para o pobre, nem para o rico,
nem para quem deve

Mas gosto das quadras escritas
em papel perfumado
que costumam ornar os manjericos
e os seus púcaros de barro:

Durmo na rua ao luar,
não tenho mais património,
dá-me um verdadeiro lar,
ó meu rico Santo António

Enganou-se o poeta,
Santo António só aceita pedidos de casamento,
pedidos da treta,
os pedidos de substância, de dinheiro,
de alimento,
devem ser dirigidos ao ministro da lambreta,
ou ao ministro Coelho, o primeiro,
aquele que se passeia por São Bento

E não me digam que o frade António
também foi aconselhado a emigrar,
não creio,
consultado o histórico,
ficámos a saber que ele foi pregar
para o estrangeiro,
foi fazer para lá o que aprendeu por cá,
apenas isso, nada mais,
e fê-lo tão bem que o fizeram Santo,
se ficasse por cá, não passaria de frade,
ou seria só Fernando,
isto concluo eu, quando já se faz tarde
para ir para a noite de Santo António
comer sardinhas e beber do tintol,
e, se conseguir manter-me sóbrio,
irei declamar estas quadras:

Esta noite em Lisboa
há arquinhos e balões,
sardinhas e pinga boa,
muita gente aos empurrões

Marcha-se na Avenida,
canta-se o fado à toa,
ninguém dorme na caminha
esta noite em Lisboa

Vou subir à Madragoa,
e escorregar na Bica,
vou espalhar brasas e broa
em Alfama e Benfica

Vou bater na Mouraria
e ralhar com o Alto do Pina,
Alcântara já não pia,
nem com a Ajuda da Marina

O Bairro Alto explode
e abraça a vida boa
ele é só para quem pode,
esta noite em Lisboa

Tudo por ti, ó meu Santo,
ó meu rico Santo António,
cobre-nos com o teu manto
e livra-nos do demónio 

Livra-nos também da fome,
da pobreza e do ódio,
vá lá, faz jus ao teu nome,
ó meu rico Santo António

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Tenho saudades do Rossio

Naquele tempo, o Rossio
era calor, era manifestação,
era comício,
falava-se livremente e com temperança,
falava-se do comunismo, do socialismo,
do fascismo, do social-fascismo,
da reforma agrária, da esperança,
da desventura dos regressados do Ultramar,
e, quando fugia a perseverança,
ouvia-se gritar
"abaixo a reacção, ditadura nunca mais"

Naquele tempo, no Rossio,
cada palrador tinha o seu grupinho,
sucediam-se as palestras,
as perguntas, as respostas,
por vezes havia burburinho,
um grupinho dada vivas ao Enver Hoxha,
outro entoava em coro ao ritmo do Kung Fu:
Marx, Engels, Lenine, Estaline,
Mao Tsé-Tung

Naquele tempo, no Rossio,
havia palradores,
eram políticos ainda sem gabaritos,
mas eram corajosos e sabedores,
conheciam Marx e os seus materialismos,
o dialéctico e o histórico,
também citavam Weber e Leibholz,
e convenciam, eram bons oradores,
onde andarão eles agora? estarão pobres?
estarão ricos? já terão morrido?

Agora vou ao Rossio
e não o vejo,
não é nada, não se passa nada,
nem um discurso, nem um gargarejo
de política, de protesto,
nem sequer uma arruada

Agora vou ao Rossio
só para ver quem passa por mim,
mas, um dia destes, agarro num clarim
e faço lá um comício
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Viva o 10 de Junho, dia de Portugal, de Camões
e das Comunidades Portuguesas

sábado, 6 de junho de 2015

Jesus

Ontem falaram-me tanto de Jesus,
de um Jesus de carne e pele,
que me apeteceu pregá-lo na cruz,
ele é rico, ele é traidor,
ele é valente, feio, digno, imberbe,
ele é costura e corte,
ele é bom treinador,
mas não devia mudar de cor,
porra, não me falem mais de Jesus, o Jorge,
calem-se, por favor

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Brincar com o fogo

Num dos meus sonhos de criança
vi um clarão e ouvi um trovão:
"sou o deus Thor,
porque dormes? levanta-te e anda,
anda brincar com o fogo"
depois lançou-me um archote,
um tição, um martelo,
paveias de caruma e de tojo
e muitas achas de bacelo

Por isso,
cresci a brincar com o fogo

Na lareira da minha avó
queimava folhas de oliveira,
elas ainda tentavam levantar voo
sobre as brasas, sobre as chamas,
mas caíam sempre na fogueira,
coitadas, perdiam o fôlego

E os fósforos, ai os fósforos,
tenho um fascínio pelos fósforos,
adoro a sua cabecinha vermelha e cega,
adoro a cor da chama que salta dos poros
dessa cabecinha incendiária quando se esfrega
na rugosa lixa da caixa
feita à medida do pau onde se espeta,
adoro os cheiros a enxofre e a pólvora
que inalam dessa acendalha,
e mais um sopro, e mais uma labareda,
viva a fogueira a crepitar, a brasa não demora
para o grelhado

Uma vez tentei fazer um foguetão,
dez fósforos atados com um cordão
eram a sua propulsão,
não subiu, nem estalou,
mas quase incendiava o palheiro,
este meu projéctil falhou
e desisti de ser engenheiro

Nunca mais vi o deus Thor,
mas adoro-o

Sim, adoro-o,
por ele, ateio fogos,
por ele, sou incendiário,
vê-se nos meus olhos,
mas atenção, não incendeio florestas,
não gosto de grandes fogos,
só gosto daqueles que não trespassam as arestas
da minha aura,
daqueles que posso apagar ou reacender
conforme o desejo da minha alma

E, tal como as folhas de oliveira,
também tento voar sobre as achas
que ardem, que queimam, que não se apagam,
por vezes, esse voo é uma brincadeira,
o fogo brilha e só alumia, não queima,
mas por vezes caio nele e queimo-me,
depois queixo-me e grito,
grito porque sinto aquela dor atroz
de quem se queima, de quem se deixa arder,
de quem se imola,
"tem cuidado, não brinques com o fogo,
é muito perigoso"
bem me aconselhava a minha avó

Nunca mais vi o deus Thor,
mas sonho com ele,
sonho que ele virá visitar-me outra vez,
virá ver-me a arder numa cripta ardente
e gritará ao meu ouvido
"acorda, levanta-te, anda brincar com o fogo",
mas eu já não o verei, nem o ouvirei,
nem a ele, nem aos que estarão a conduzir o rito
da fogueira que me consumirá sem dor

Porventura, nunca mais verei o deus Thor