quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O ácido desoxirribonucleico

Quando somos gerados,
ficamos logo cravados
com milhões de minúsculos alfinetes
feitos de um composto orgânico
a que chamam ácido desoxirribonucleico,
nada de complicado, são simples alfinetes de gel
com um mecanismo mecânico
que abre e fecha conforme o fecho

Esse ácido é apenas mais um dos muitos
produtos químicos
que são lançados ao ar sob a forma de polímeros,
com uma diferença,
o ácido desoxirribonucleico é lançado ao ar
para cair no chão, não para se esfumar,
e ao cair no chão dá-se uma reacção
donde resulta sal e bastante água,
aí estamos nós,
somos água e sal
e conservamos todos aqueles polímeros
muito bem interligados e ordenados,
eu chamo-lhes alfinetes de gel,
mas são mais conhecidos por ADN,
a sigla do ácido desoxirribonucleico

E está tudo gravado nesses alfinetes,
está lá toda a nossa maneira de ser,
estão lá todos os nossos genes,
está lá toda a herança de quem nos fez,
e de quem fez quem nos fez,
e de quem fez quem fez quem nos fez,
e de quem ... e de quem ...
e de quem fez o Adão e a Eva,
resta saber somente
quem voltou a engravidar a Eva,
se o Caim, se o Abel,
tenho para mim
que foi o Caim

Recentemente descobri que o meu curto pescoço
é um alfinete de um dos meus tetravós,
e que sou casmurro, peludo, teimoso
e de mau feitio,
porque esses alfinetes passaram dos meus bisavós
para os meus avós, e nenhum deles abdicou desses pós
do ácido desoxirribonucleico

Mas não me queixo muito desse ácido,
até gosto de quase tudo o que herdei,
só protesto por não ter herdado
a habilidade de um dos meus avós,
eu não vi, mas contaram-me,
ele sabia trabalhar a pedra calcária,
acariciava-a e depois rendilhava-a
com primor,
das suas mãos saíram estátuas de santas
e de santos para o altar-mor,
cúpulas de chaminés,
rosáceas de igrejas e de capelas,
cantarias, degraus e outras obras,
e vejam, das minhas mãos não sai nada,
nada, nem rosas, nem cravos, nem estrelas,
nada, apenas prosas

domingo, 23 de agosto de 2015

Dor

Sofro quando a dor me dói,
também sofro quando a vejo
em alguém a mostrar que dói,
é a mesma dor,
e agora sinto-a, vejo-a,
quase a beijo,
é a dor a massacrar a matéria
de que é feito
o ser humano, um ser que discerne,
mas que é feito de carne perecível,
amarga, efémera,
frágil,
é carne que dói, e que dói ainda mais
quando quer perecer na Primavera

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Deuses

Meu Deus,
estou a ver um filho ao colo a chorar
e uma fronteira para atravessar,
e não acabam as fronteiras,
nem os filhos ao colo a chorar,
fogem das guerras, do horror, 
são imagens cruéis
que ultrapassam as fronteiras da dor

Tudo porque não há paz entre os homens,
e não há paz porque os homens são bichos
guerreiros, surdos, ferozes,
sanguinários, estúpidos,
e tornam-se piores
quando atacam para defender os seus deuses,
ó deuses, sejam mais lúcidos
do que os vossos guerreiros homens,
ó deuses, acordem, falem, apareçam,
celebrem entre vós um acordo de paz celeste
e façam com que os vossos guerreiros vos obedeçam

O quê?
não acredito, não acredito,
dizem-me que os deuses celestes
também andam em guerra,
ó, está tudo perdido!
ó, nem os deuses estão em paz!

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Sempre a viajar

Estou a viajar comigo,
ando a caminhar e a sonhar,
a pensar, a ver, a ansiar,
estou a viajar sozinho,
sem bagagem, a pé, com vagar,
já não quero conquistar o mundo
e não tenho pressa de mergulhar,
também já desisti de ser vagabundo
e de pintar o luar

Ando a andar,
mas agora sento-me à sombra,
o solo está a ferver,
já encomendei uma água com gás,
vou escrever:

«A Terra também anda a viajar,
anda de roda ao redor da sua estrela,
e vai de roda, e vai de roda,
não se cansa a minha Terra,
ai de mim se ela pára,
ai de mim se ela muda de rota,
ai de mim se ela se estatela,
ai de mim se ela se emborca,
ai de mim se ela tem pressa

Até agora, os sinais do céu
sempre me disseram
que a Terra não tem pressa,
mas se ela se apressar,
ao menos que não se estatele,
ao menos que não se emborque,
que mude, antes, de rota,
mas para aonde irá ela?
Irá para os braços de outra estrela?
Será atraída por outra força?

Tanto me faz,
eu irei sempre com ela,
e sabe-se lá!
se ela seguir outra rota,
talvez acabe o mal,
talvez acabe a morte,
talvez estejamos sempre a renascer,
talvez venha a acontecer
o que se reza nas igrejas,
talvez o Paraíso invada a Terra,
e no Paraíso não nos faltarão cerejas
todo o ano,
nem mananciais de água pura, de leite e de mel,
nem o pão

Sim, nós estamos colados à Terra,
somos terráqueos,
mas seria mesmo bom que o Paraíso
nos invadisse,
seria mesmo bom que a Terra fosse o Paraíso,
seria tão bom e seria tão bom que fosse já agora

Informa a TV:

- O Paraíso invadiu a Terra, acabou a guerra,
(notícia de última hora);

- Deixámos de ser terráqueos,
agora somos habitantes do Paraíso,
agora somos ...;

(oh, a TV não sabe como se chamam os habitantes do Paraíso)

- Falsa notícia: o Paraíso não invadiu a Terra
(notícia de última hora);

- Continuamos em guerra
(notícia a toda a hora);

- Meus caros concidadãos,
minhas caras concidadãs,
minha querida gente,
continuamos a ser terráqueos
(comunicação oficial do Sr. Presidente)

Não é bem assim, Sr. Presidente,
nós somos terráqueos,
mas vivemos no Inferno,
sim no Inferno,
porque esse já há muito que invadiu a Terra
(isto escrevo eu, neste caderno)»

Levanto-me, fecho o caderno,
já não faz tanto calor, aí vou eu,
ando sempre a viajar,
sentado, ou em pé,
viajo sozinho comigo,
viajo a imaginar cataclismos,
colapsos, tempestades, vórtices,
vulcões, vertigens, abismos,
maremotos, metamorfoses,
infernos, paraísos,
e não vou parar, nem com fortes doses
de destilados absintos,
agora estou aqui,
mas daqui a pouco estarei ali,
sempre sem pressa, sou assim, sou eu

E se me perder por aí,
basta-me seguir um rio,
se tiver luz,
ou olhar para o céu,
se estiver às escuras,
para, enquanto for eu,
encontrar o caminho das minhas luas

terça-feira, 18 de agosto de 2015

A minha porta

A minha porta dá para a rua,
é uma porta branquinha e nua

Há pouco, bateram à minha porta,
não estava surda,
- trazemos uma boa nova,
estamos salvos, Deus é a cura,
nós somos a sua testemunha

Escutei o que diziam,
também me escutaram,
- Deus salva toda a gente,
ou só salva quem nele acredita?

Despediram-se de mim,
- não perca a esperança
e dê graças à vida
 
Eu dei-lhes pêssegos
e beijos

domingo, 16 de agosto de 2015

Hoje é Domingo

Vestem-se os corpos lavadinhos,
arrumados, perfumados,
bonitinhos, bonitinhos,
vão confessar os seus pecados
e vêm perdoados, purificados,
abençoados,
e mais lavadinhos,
porque hoje é Domingo

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Chamas no dia treze

Comove-me a chama das velas
que bebem parafinas,
comove-me quem de joelhos
as acende com lágrimas
a implorar curas, milagres,
misericórdia

E de que vale a minha comoção?
E de que vale aquela combustão?
As Perseidas

Da janela do meu sótão
distingo a Estrela do Norte,
fixo-a longamente enquanto aguardo as Perseidas,
mas, sem querer, envolvo-me na filosofia do infinito
e mergulho na quinta dimensão,
vejo-me a vaguear pequenino
na abóbada celeste,
vou recostado numa jangada
que é a cama do meu sótão,
uma cama com uma janela mágica,
através dela sou barqueiro,
que me proteja São Cristóvão
nesta jangada sem velas
a viajar neste vespeiro
de planetas e de estrelas

Não falta o ar na minha jangada,
mas perdeu a gravidade,
passo ao lado de Marte
e diz-me que não tem nada,
despeço-me de Júpiter
que me empurra sem piedade
para lá do sistema solar

Ao cruzar a fronteira,
sou parado por uma estrela,
- stop, estás preso, ó barqueiro,
a tua jangada não tem bandeira,
- desculpe, ó Senhora Estrela do Sul,
o Plutão ficou-me com a bandeira,
doze estrelas num fundo azul,
- ah, acredito em ti, como vens da Terra do Sol
deixo-te passar a fronteira

Ainda lhe pergunto por Deus,
o criador do Universo,
não responde, mas dá-me um panfleto
com detalhes do seu Céu,
aí diz que todo o Universo nasceu
de uma violenta explosão após um duelo
entre o hélio e o hidrogénio

E a Estrela do Sul não quis mais conversa,
com uma bojarda estelar
manda a minha jangada
para os caminhos da Via Láctea,
urra, urra,
sou um filho de Hera,
urra, urra,
mamo quanto quero

Mas logo ouço a Estrela Feiticeira
a resmungar:
- há muitas estrelas e estrelinhas,
eu sou a maior,
sou muito mais velha que o teu Sol,
vi-o nascer, ele sempre foi um lingrinhas,
dentro de pouco tempo vou comer o teu Sol,
eh, eh, eh, eh, lol

Fico desanimado na minha jangada,
mas alegram-me as três Marias,
têm nomes estrangeiros, uma maçada,
mas em português chamam-se Marias,
ainda bem,
são a Maria José, a Maria Manuel e a Maria Antónia,
uma torra café, a outra colhe mel e a outra destila ambrósia,
sorriem para mim e desejam-me boa viagem,
ainda me falam numa quarta Maria, uma irmã anã
que quase não se vê,
chamam-lhe Maria Belém

Credo,
vejo uma seta para um buraco negro,
desvio-me abruptamente,
sofro muito de claustrofobia e de vertigens,
tento evitar os cães, o Maior e o Menor,
e abordo as estrelas virgens
da constelação Virgem, que horror!
estão a ser violadas por mártires,
eles são aos milhares a gritar:
á-lá, á-lá, que-bar!

E continuo a navegar,
mas já me falta o ar,
já não consigo relatar mais
do que vi e do que vejo da minha jangada,
assim no Céu como na Terra,
anda tudo em guerra,
é só explosões termonucleares,
as estrelas mais fortes comem as mais fracas
e ressuscitam com mais raiva e mais força,
umas tornam-se novas, outras supernovas,
afinal, o Universo é todo infeliz,
que me inspire o Odisseu,
a quem chamam Ulisses,
quero regressar à dimensão
do meu espaço e do meu tempo

Pum, catrapum, trás,
estourou a minha jangada,
acho que bati no fundo do Norte,
ó!, choquei mesmo com a Estrela do Norte
Ai, ai, ai,
ai a minha cabeça,
bati com ela com tanta força
que até vi estrelas,
uma chuva de estrelas,
serão as Perseidas?

Não são as Perseidas?
Mas onde estou eu?
O que faço aqui?
Ah!, já sei,
levantei-me da cama
e dei uma estrondosa cabeçada
no tecto do sótão,
a minha cabeça está magoada
e pede-me desculpa,
diz-me que acabou de chegar da Estrela do Norte
e ainda não se habituou à dimensão
do espaço e do tempo do meu corpo
e do meu sótão

Não sei o que fazer com a minha cabeça,
anda sempre no ar a viajar
e raramente me leva com ela,
já não tem paciência para me transportar,
foi o que aconteceu esta noite,
eu só queria ver as Perseidas
mas ela quis mais, ela quer sempre mais,
escondeu-me as Perseidas
e foi à Estrela do Norte sem mim,
qualquer dia abandona-me de vez

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

A nascente do Lis

Desta fonte escondida
no sopé do meu monte
não corre água fresquinha,
não chora a minha fonte

Secaram-lhe as lágrimas,
não chora a minha fonte,
já me secam as rimas
desta pena de bronze

Mas se há sons no monte,
a cigarra, o zângão,
a sombra, o horizonte,
o calor do Verão

Mas se há sardaniscas
e outros rastejantes,
lagartos, lagartixas,
cobras arrepiantes

Mas se há o alecrim,
o tojo, o rosmaninho,
a silva, o capim,
a ruína dum moinho

Mas se há a branca pedra
da cor da pura neve
onde o calcário medra
e o sol se embebe

Mas se há tanta coisa,
tanto cheiro no ar,
tanta ave a voar,
tanta ave que poisa

Porque não brota água
desta fonte do monte?
- é o monte que a guarda,
diz-me a santa do monte

- Ó Senhora do Monte,
ainda bem que m'atendes,
faz com que esta fonte
liberte os seus duendes

E aguardo um milagre,
ou uma aparição,
mas foi reza em vão,
só veio um milhafre

Que me valham as rimas
e as musas que m'as ditam,
que me valham as ninfas
e a luz que irradiam

Acordem esta fonte,
esta fonte das Fontes,
onde acabam os montes
e o rio Lis desponta

domingo, 2 de agosto de 2015

Recordo

Estou aqui e recordo,
recordo um tempo ido,
recordo o calor, o frio, os fumos,
o carinho, o colo, o abrigo,
recordo o cheiro podre dos fungos
quando se tirava o esterco húmido
dos currais dos fundos
do movimentado pátio

Recordo como a vida corria,
a agricultura de subsistência,
os sons e os cheiros da eira,
a junta de vacas, o burro, as ovelhas,
as galinhas, os leitões na pocilga
que não largavam as tetas
da volumosa marrã aflita,
recordo os coelhos e as suas moléstias,
- ó prima,
unte a coelheira com creolina

Recordo a venda, as tulhas, a taberna,
os pratos da balança, os fregueses,
o cheiro a vinho, a aguardente, a ginebra,
a prateleira dos "Portos", dos "Provisórios",
a bancada das jarras, dos copos,
a gaveta dos trocos,
recordo os bêbedos da aldeia às turras,
recordo a caixa dos lenços, das cuecas,
das meias de vidro, das peúgas,
recordo as mulheres com saias de pregas
e os homens de barrete e de colete
quando regressavam da feira ou do dia treze
a cavalo nos seus burros em trânsito para a Torre,
eles nem desciam das suas montadas
para beberem a sua dose,
aquilo é que eram albardas!

Recordo os dias bons, os dias maus,
recordo o vazio e a falta de esperança
ao ver os irmãos e irmãs partirem
com o peso das malas
para uma estranha França

Recordo agora o que passou,
recordo também esta sala,
era tão acolhedora,
sempre com flores, soalheira,
arrumada e bonita como a dona,
recordo o cheiro do seu chão de madeira
sempre encerado, tinha um ar tão doce

Mas tudo acaba quando tudo abala
e já tudo abalou deste casarão em ruínas,
ficaram apenas os restos desta sala,
as janelas, as cortinas,
a luz do sol, o sítio do relógio,
uma moldura com rostos de meninas,
um calendário com o Santo António,
um fruto de plástico, umas mesinhas
já carcomidas,
focos de caruncho e de pó,
e silêncio, muito silêncio,
um silêncio doloroso,
já não ouço aquela voz

Recordo e choro