terça-feira, 29 de setembro de 2015

O cão e a dona

Ia toda airosa
pela rua fora
a dona do cão,
ia de salto alto,
acima do chão,
cara pó de talco,
riso flor da rosa,
ancas a dar a dar
toda vaporosa,
toda perfumada,
o seu cão ia atrás,
muito carinhoso,
muito lustroso

O cão parou
e cheirou o chão,
depois cagou
um cagalhão,
depois outro,
ela nem olhou
e pensou:
merda de cão,
que fedor,
que horror

Seguiram rua
a dona e o cão,
iam airosos, vaporosos,
um regalo de asseio,
os seus cagalhões malcheirosos
ficaram a secar no passeio

sábado, 26 de setembro de 2015

Fui peixe

Acordei agora
e já é hoje
há muita hora,
dormi bem esta noite,
mas ainda não sei bem o que se passou,
parece que dormi dentro do mar,
houve tempestade,
muito vento e as vagas
arrastavam-me para uma praia
que não estava lá,
era um náufrago, mas era peixe,
nadava com tubarões, mantas, raias,
baleias,
uma moreia ria-se de mim,
ela nunca tinha chocado
com um peixe assim,
sem barbatanas e sem rabo

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Viver é ter paciência

Viver é ter paciência
para ver o tempo a passar,
a fazer tiquetaque, tiquetaque,
sempre a mesma cadência
de noite e de dia

Viver é ter paciência
para a matéria que nos enforma,
para esta massa mole
que nos fere com a doença
e que não aguenta a sede e a fome

Viver é ter paciência para nascer
e para crescer como somos,
é ter paciência para ver morrer
e para ouvir dizer que todos
temos que morrer

Viver é ter paciência para o entardecer,
para o desânimo,
para a infelicidade, para a tristeza,
para a ilusão, para o engano,
para a crueza

Viver é ter paciência
para ver o fausto e a riqueza
de poucos
ao lado da miséria e da pobreza
de todos os outros

Viver é ter paciência
para optar entre matar ou morrer,
é ter paciência para amar, odiar,
recordar, aguar, ajudar, sobreviver,
aprender, ensinar, acreditar, trabalhar ...

Viver é ter paciência
para viver

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Outono

Ó Setembro,
acorda o Outono,
é daqui a pouco que o Sol vai bater
na linha do tempo,
é o momento do equinócio
deste hemisfério
mais a norte,
é o momento em que se deita o Verão
no leito onde dorme,
emergindo o Outono
do fresco subterrâneo
onde hibernou

Bem-vindo, ó Outono,
não te via desde o ano passado,
vem e começa já a despir as árvores
e a vestir os campos de cores
de amarelo torrado,
vem e vai ao mar buscar
o húmido vento
e trá-lo carregado de nuvens de água
e de sustento,
que venha esse vento,
que venha livre, a uivar,
que não esmoreça,
que se desfaça em mornas chuvas
nos vales, nas serras, nas várzeas,
que se desfaça antes que arrefeça,
antes que me calce as pantufas
e me cubra as orelhas e a cabeça
de lãs, ou de camurças

Bem-vindo, ó Outono de 2015

domingo, 20 de setembro de 2015

Passador de fronteiras

Para passares as fronteiras sem passaporte
precisas de um passador,
ele sabe como passar a tua fome e a tua dor
para lá do contraforte

Numa manhã, bem cedinho,
ele abalou,
às costas levava a trouxa,
na mão um saco de linho
com broa e toucinho,
ia ter com o pai aos "champignons"

Passou a pé a fronteira
no grupo do passador,
deambulou muito entre Almeida
e Salamanca,
ele só tinha treze anos,
disse-lhe o passador:
- toma lá, fuma para pareceres grande,
nunca mais parou de fumar

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

A vida é uma passagem

Dizem que a vida do Homem é uma viagem
que não acaba neste mundo,
dizem que ela continua, dizem que ela passa
para a outra margem,
mas alguém sabe como é essa outra margem?

As respostas que eu conheço são dogmas,
e, portanto, não as discuto, é assunto sagrado,
até aceito as diversas formas
dessa margem do outro lado
descritas nas diferentes escrituras,
todas elas sagradas,
mas ontem ouvi umas bruxas
que liam em coro as seguintes palavras:

«A vida do Homem é uma passagem
que acaba no fundo das trevas,
morra ele impregnado de fé,
morra ele a arrotar ódios e guerras,
morra ele em paz, se a houver

E este Homem não merece melhor:

Porque ele não foi ensinado a amar;
porque ele matou a esperança;
porque ele queimou o mar;
porque ele não sabe ser criança;
porque ele não sabe celebrar a vida;
porque ele só sabe celebrar a morte;
porque ele farta-se de matar

Sim, este Homem farta-se de matar,
e, pasme-se,
ele ri-se quando mata, sim ele ri-se
quando mata,
este Homem não passa de uma besta,
sim, quando mata ele ri-se,
sim, este Homem é a Besta,
a Besta do Apocalipse,
sim, este Homem incarnou o mal,
sim, este Homem incarnou o espírito maligno,
sim, este Homem é o fim,
e o mundo acaba para o Homem
quando nascer o Sol
no meio do Pacífico
no dia cinco ...»

E fugi dali,
não ouvi mais aquelas bruxas,
subi ao meu quinto piso
e perguntei-me: para quê ter dúvidas?
a outra margem fica no Paraíso,
e pronto,
assim rezam as sagradas escrituras
e os seus pregadores,
quer os que as pregam ponto por ponto,
quer os que acrescentam um conto,
e agora vou tentar dormir tranquilo, sem suores

domingo, 13 de setembro de 2015

Refugiados

Procuram um abrigo,
um refúgio,
mas fogem de que perigo?
de um dilúvio?
não,
das lavas de um vulcão?
não,
da natureza em fúria?
da enxurrada? da tormenta?
da seca extrema?
não,
então?
procuram refúgio
porque fogem
do pior perigo:
o Homem

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Cantiga a um velho rico que não quer morrer

De que te vale teres cofres cheios de ouro,
se não te rejuvenesce esse tesouro,
de que te vale teres camisas de seda pura,
se nunca vestiste ternura,
de que te vale teres um Rolls-Royce,
se não entendes o James Joyce,
de que te vale uma donzela numa noite de núpcias,
se já não te encharcam as volúpias,
de que te vale teres um iate,
se navegas para o desastre,
de que te vale polires os espelhos,
se os teus olhos já são velhos,
de que te vale um leito de luxo,
se te deitas num corpo murcho,
de que te vale teres um solar,
se nele não entra o ar,
de que te vale a tua vaidade,
se tudo se vai com a idade,
de que te vale teres,
se te pesam os teus haveres,
de que te vale quereres,
se só dizes o que não queres,
e o que tu não queres é morrer,
mas isso tem que ser

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Debate

Tocam os sinos a rebate
na torre da nossa igreja,
não é incêndio, nem desastre,
nem sinais de qualquer peleja

Também não é dia de festa,
nem de caça ao javali,
terá fugido alguma besta
dos currais do senhor Joaquim?

Então vossemecê não sabe?
hoje temos todos que ver
o que vai passar na TV,
vamos ter um senhor debate

Pela esquerda vem o Costa,
o Coelho pela direita,
já têm as armas à mostra
e os árbitros à espreita

E, como eu sou um adivinho,
já sei quem ganha o debate,
vamos ali beber um tinto
e eu dir-lhe-ei o resultado

O Coelho tem ar seguro
e de quem foi sempre mimado,
tem rosto mecânico e puro,
é um robot engravatado

O Costa é bonacheirão,
parece-me ser mais humano,
mas não tem ar de aldrabão
e não vencerá o espartano

Sabe muito bem este vinho,
que venha mais uma rodada,
não gosto do meu vaticínio,
que venha mais uma rodada

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Alforrecas

Gordas alforrecas
deram hoje à costa na Costa,
em cerca de duas léguas
contei mais de mil,
se estão mortas,
foi um suicídio colectivo,
se estão vivas,
foi uma romaria

domingo, 6 de setembro de 2015

Chão de xisto

Lá bem no fundo
corre água entre pedras
e musgo,
um som sobe o vale,
é o murmúrio dessa água
a correr,
ela assobia e sussurra
às pedras e ao pinhal
que lhe faz falta muita chuva,
muita chuva fresca,
sem ela não tem caudal,
nem força, nem voz,
para correr depressa
no fundo do vale
como um rio turbulento, veloz,
bravo, furioso,
um rio com pressa de chegar à foz

O murmúrio da água
sobe o vale e vem até mim,
ouço também o arfar das cigarras
e inspiro o aroma doce e quente da resina,
fico alucinado, levezinho,
sinto-me um ser alado com asas
de feto e esqueleto de pinho,
ainda bem que me agarras,
ó chão de xisto

sábado, 5 de setembro de 2015

Os feiticeiros de Bilderberg

Vemos um corpo de um menino curdo
todo molhado,
fugia da guerra, das bombas, do absurdo,
morreu afogado,
e a Europa chora,
chora e acordou,
só agora?
mas já morreram tantos meninos!
viva a Europa,
agora vai ajudar os refugiados sírios,
quem mais ajudar,
leva uma medalha de âmbar

Mas que hipocrisia!
Quem é que instigou e instiga
a guerra no Iraque, na Síria,
etc. etc. etc.?

Sim,
estas lágrimas da Europa
são lágrimas de crocodilo,
são as mesmas lágrimas
que correm nos rostos
dos nossos blaires
dos nossos barrosos,
dos nossos aznares,
a Europa apoiou-os,
a Europa foi criminosa,
a Europa mexeu no vespeiro dos iraques
e deixou lá as vespas,
elas cresceram, aumentaram,
agora são bestas

E o que fazem agora as bestas?
destroem, matam,
estavam à espera de quê?

E o que fazem agora
os aznares, os blaires, os barrosos?
discursam, são oradores,
dão lições de política e de história,
sem remorsos, sem dores,
prendam-nos, prendam-nos,
eles arranjaram falsas provas
para serem legítimos invasores
ao lado dos bushes,
são criminosos, prendam-nos, prendam-nos

E sabem por que razão não acabam as guerras
no Iraque, no Iémen, no Afeganistão, na Síria,
no mundo?

E sabem por que razão não acabam as misérias
da maioria das gentes de África?

Porque quem manda no mundo
são os homens que lucram com a guerra
e com a miséria,
são os donos das armas, do crude,
do capital, da informação, dos negócios,
são eles, são eles, são eles,
são eles que atiçam os ódios,
são eles e os seus homens vestidos
de políticos,
são eles, os feiticeiros de Bilderberg

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

O penedo de granito

Ele é escuro, imponente,
redondo, está suspenso
naquela encosta,
mas não se desprende,
nem rebola

É um penedo de granito,
nem lhe toco,
deve ser duro e radioactivo,
também não será oco,
nem arenito

Olhem, ali vai um pastor,
um pastor menino,
sobe a encosta com o seu rebanho,
um amor,
olhem, não me engano,
o menino e o seu rebanho
pararam junto ao penedo,
não têm medo

Gritei-lhes, saiam daí,
não se encostem a esse penedo,
ele pode rodar e cair
no vale e esmagar o arvoredo,
mas eles não me estavam a ouvir

O rebanho pastava a erva em flor,
pachorrento, tranquilo,
o penedo de granito, também tranquilo,
dava abrigo ao pastor,
parecia ser seu amigo

E eu muito aflito,
ai que aquele penedo vai rebolar,
ele tem vida, ele tem coração,
ele tem energia, ele está vivo,
ele está acima do chão,
ele vai rebolar,
e eu, muito aflito,
grito:
- cuidado, esse penedo de granito
vai rebolar
pela encosta abaixo,
ele está acima do chão, ele está no ar,
ele vai rebolar

Desce o pastor a encosta,
vem direito a mim,
terá ouvido o meu grito?

- Ó senhor, não viu por aí um cabrito?
afastou-se do meu rebanho e perdi-o,
é só prejuízo, estou aflito,
sou um humilde pastor de rebanhos,
subo e desço estes vales de granito
a guardar os cabritos e os anhos
do meu dono rico,
e ai de mim se perco algum, ai de mim

- Boa tarde, rico menino,
não vi nenhum cabrito
tresmalhado,
mas se eu o vir,
encaminhá-lo-ei para ti

- Bem haja, meu bom senhor

- Espera, pastor menino,
não te assusta aquele penedo
de granito?
- Ó não, dele não tenho medo,
é o meu abrigo,
escondo-me nele quando tremo
de frio, de fome, de medo

O pastor menino
voltou a subir a encosta,
irá a chorar?
não, não, ele não chora,
não, ele não pode chorar,
ele é rijo, ele tem que ser rijo,
ele tem que ser rijo,
rijo como o penedo de granito

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Beirã

É estranha esta estação,
muitas linhas, alguns cais,
não há um único vagão,
não guarda carruagens,
vejo apenas um homem,
está só,
tem ar de viajante sem viagens,
eu pergunto:
- a que horas passa o próximo comboio?
- ó, o senhor chegou atrasado,
o próximo comboio já passou, e foi o último