segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Fernando Pessoa

Faz hoje anos,
ontem, ele estava só
com a sua solidão,
foi ao Martinho
e abusou do absinto,
depois deitaram-no só,
só não,
deitaram-no com a morte,
só ela lhe deu a mão

sábado, 28 de novembro de 2015

Cantiga ao Zé da Pocariça

Ele era pedinte adivinho,
carregava a sua mobília,
uma panela, um tachinho,
uma sertã, uma mochila

Tinha um sorriso amarelo,
as calças presas por um fio,
nos pés, umas botas de pele
já deixavam entrar o frio

Cobria-o uma gabardina
parda e coçada pelo tempo,
uma boina já carcomida
abrigava-o do relento

Ele era pedinte leitor,
contava lendas e histórias,
recitava poemas de amor
e cantava as suas glórias

Lia a sina a fazer contas
em folhas de papel de embrulho,
quando elas ficavam prontas
anunciava um bom futuro

Foi com ele que aprendi
a juntar as primeiras letras,
numa noite de vigília,
ouvi-o chamar as estrelas

Ele aparecia quando queria,
quando deixou de aparecer
pensei que ele não aparecia
porque já não queria aparecer

Ele era o Zé da Pocariça,
pedia apenas dormida
e um papo-seco com chouriça,
por vezes lamentava a vida

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Os dinossauros e a Lucy

Abriu-se uma brecha
na densa atmosfera,
daí saiu um imenso clarão
que iluminou a Terra
de norte a sul, de este a oeste,
depois, um ensurdecedor trovão
fez tremer o chão
já numa total escuridão

Morreram todos os seres vivos,
em silêncio, sem gritos,
uns morreram logo,
outros agonizaram por mais uns dias

De milhões e milhões de dinossauros,
só ficaram os ossos,
eles foram donos e senhores da Terra
durante cento e sessenta milhões de anos
de outra era,
multiplicaram-se muito,
cresceram demais,
só davam urros,
não tinham um minuto de paz,
matavam-se uns aos outros,
também matavam os outros animais

Tornaram-se monstros,
encharcaram a atmosfera
de gazes de carbono
que eram expelidos pelas chaminés
de montanhas de fezes,
esses gazes comeram a camada de ozono,
- não pode ser,
estes monstros têm de desaparecer,
assim deliberaram os deuses,
assim se fez

A Lucy não foi um dinossauro,
foi um hominídeo do sexo feminino
e faz hoje 41 anos que foram descobertos
os seus ossos,
- são ossos do nosso antepassado mais antigo,
afirmou quem os descobriu

E também afirmou que a Lucy
viveu há 3,2 milhões de anos,
sendo assim, ainda podemos estar aqui
mais 157 milhões de anos
como os dinossauros,
mas eu acho que os deuses
já se reuniram e já deliberaram,
- não pode ser,
estes monstros são piores que os dinossauros

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Ó Abraão

Ó Abraão,
por que razão
partiste de Ur para Canaã?
por que razão
levaste o teu clã
para as terras dos Cananeus
dos Assírios, dos Hititas,
dos Filisteus?
vá lá, deixa-te de intrigas
e não me digas que foi o teu deus
que te ordenou a partir
e a conquistar terras que não eram dos Semitas

Ó Abraão,
por que razão fizeste mal as partilhas
entre os teus filhos Ismael e Isaac,
não sei se sabes, mas essas duas famílias
nunca viveram em paz!

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Espantalho

Ó estrelas do céu, daqui deste meu abrigo
quero segredar-lhes apenas estas palavras
que definem o meu corpo nado e mendigo,
valho menos do que um espantalho das searas

Ele espanta pardais e segue o som da tramela,
está sempre de braços abertos, faz rir quem passa,
ele é espantalho e também faz de sentinela
de noite e de dia, não se cansa, nem disfarça

Quero ser de palha como o espantalho de palha,
não lhe bate no peito um coração vermelho
e rejuvenesce quando lhe mudam a palha

Ó estrelas do céu, tirem-me a carne e o cabelo,
encham-me de palha fresca e de penas de gralha,
fico espantalho, mas não engelho de velho

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Imolou-se por Alá

Ele vestiu um colete de explosivos
e imolou-se por Alá

Ele, o Alá, ouviu os gritos
e acolheu no paraíso
todo o sangue derramado,
o sangue do imolado
e de quem teve o azar de estar ali
e não acolá

Foi então que o imolado
descobriu que o seu Alá
era um deus desalmado

sábado, 14 de novembro de 2015

A Ana partiu

Ela fechou os olhos e os lábios,
mas não foi ela que os fechou,
foi ele, o bicho que se cravou
no seu corpo de sal e de favos

Foi ele que lhe fechou os olhos
e os lábios para sempre, foi ele,
o bicho caranguejo sem pele
e cheio de espinhos e de abrolhos

Partiu assim a sobrinha Ana,
nos seus olhos e lábios cerrados
vi o esforço dos derrotados,
ficou mais cara a esperança

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

A vasilha já era velha

Ela era a heroína da adega,
era vasilha de ripas de carvalho
que já se dobravam aos golpes do malho,
mas ela era a vasilha da água-pé

Havia festa no dia em que era aberta,
chouriço, castanhas, pão, homens e copos
enchiam de alegria aquela adega
onde a água-pé corria a rodos

Mas aquela vasilha já era velha
e deu de si num dia de São Martinho,
desabou e encheu o chão da adega

De água-pé que não queria ser vinho,
- mas que desgraça, grita o Zé da Velha,
quando bateu à porta do seu vizinho
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Viva o dia de São Martinho 

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Ansiedade

Tenho cá dentro uma bola de fogo,
arde, arde, arde, e não se apaga,
quando respiro, queima,
quando falo, sai lume,
quando choro, sai lava,
quando durmo, não durmo

Sou fogueira de fogo lento,
dói, dói, dói, e não passa,
se me sento, levanto-me logo e ando,
e ando, e sento-me, e ando,
e ando, e sento-me, e ando,
e ando, e ando e não descanso,
até quando?

Acalma-te, diz uma voz amiga,
acalma-te, acalma-te, isso passa,
e o fogo amaina, amaina,
o lume vai ficando brasa,
a brasa vai ficando cinza

Mas um tição e mais outro tição
chegam-se ao lume quase inerte
e reacende-se o clarão
da fogueira que desperta
e que reclama mais achas, mais carvão,
mais ânsia, mais treva

Acalma-te, acalma-te,
diz-me a mesma voz,
isso passa, anima-te,
virão dias melhores

E a fogueira sem achas
acalma,
ainda crepitam chamas,
mas vão-se apagando,
apagando, apagando,
e apagam-se,
ficam só sinais de fumo branco
e de calor brando

Não voltes a acender-te,
ó fogueira de ânsias,
de tormentos, de angústias,
que não volte a temer-te
e a regar-te com lama ardente,
que nada reste dessas fagulhas
e que continue apenas acesa
a chama da tranquilidade,
aquela chama de vela
que se mantém impávida
no meio da tempestade,
"like a candle in the wind"

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

O cão perigoso

Aquele cão grande de raça
é perigoso,
está a ladrar a quem passa,
quer ferrar os dentes num osso,
ou nas minhas canelas,
é só ameaça, diz o dono,
ele não faz mal, está só a afinar as goelas,
o meu cão é tão meiguinho, e tem tanta graça,
ele não faz mal nem às cadelas,
só ameaça

Ão, ão, ão,
é tão meiguinho o meu cão
e não caga na rua, caga no jardim,
diz o dono cagão,
ão, ão ,ão

Ão, ão, ão,
é tão, tão, tão
meiguinho o meu cão,
e tão meu amigo o meu cão,
não tenha medo do meu cão,
ele não morde,
só quer festinhas, quer ver?
ele não morde,
tá a ver

Ão, ão, ão,
ai que ele vem atrás de mim,
ó pernas para que vos quero,
digo eu, com as calças na mão
cagado de medo

Não me mordeu o cão perigoso,
mas eu mordi o dono,
abocanhei-lhe o pescoço
e dei-lhe um pontapé no estômago
(isto imaginei eu enquanto fugia
a sete pés do colosso)

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Dia do fiel defunto

Chove nos montes,
chove nos povoados,
cantam as fontes
calam-se os pássaros

Chove chuva de Outono,
a terra abre-se alegre
e recolhe o sumo morno
que o céu encoberto verte

A erva pinta-se de verde,
a pedra branca amolece,
a horta pula e floresce,
afoga-se a seca infértil

Deixem chover a chuva,
ela trás vida e frescura
a este dia do fiel defunto
que já não quer este mundo  

E que chova também chuva
no dia do defunto infiel,
talvez assim se torne fiel
depois de deitado na sepultura