domingo, 27 de dezembro de 2015

Poço do Bispo

Comove-me o Poço do Bispo,
comove-me o seu largo central
onde encontrava o Cândido à hora do almoço,
eu interrompia as lides no Terminal TIR da Matinha,
ele interrompia o fabrico de uma metralhadora
modelo Fábrica Braço de Prata, vulgo FBP,
nesse largo ainda se vêem o relógio do José Domingos Barreiro,
que há muito dá a mesma hora,
o desenho das pipas do José Maria da Fonseca
e o salão de baile do Clube Oriental de Lisboa,
onde eu bailava marchas e via jogar a sueca

Comove-me a Rua Fernando Palha,
aí assistia à descarga de peixe e de mariscos
para armazéns frigoríficos,
por vezes ouvia "a Alfândega só atrapalha"

Comove-me o Palácio da Mitra
e a qualidade de vida
dos seus habitantes, quão rica
deve ser a vida num palácio!

Comove-me a ausência da casa
do António Sérgio,
era uma casa senhorial, provinciana,
tinha um alto piso térreo
e o primeiro andar com varanda,
foi arrasada
para dar lugar a nada

Comove-me ainda mais
a lembrança daquela figura de mulher curvada
que baixava à doca, quase sempre ao fim da tarde,
dizia-nos que esperava o seu filho
que tinha partido para defender o Ultramar,
mas ele já tardava
e perguntava-nos se o barco estaria a chegar,
"gostava tanto de o abraçar",
concluía ela num transe de loucura e de saudade

Comove-me o sempre velho Poço do Bispo

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Reflexões numa tarde de Natal

O mar
tem lá dentro um segredo
que não quer revelar,
é um mostrengo
que não se quer mostrar

O ar
tem lá dentro uma bolha
que não quer rebentar,
é uma rolha
que está sempre a rolhar

A chuva
tem lá dentro uma gota
que não quer esgotar,
está sempre rota
quando quer brotar

O tempo
tem lá dentro uma rosca,
está sempre a enroscar
e nunca fica tosca,
é ele a passar

O pensamento
tem lá dentro uma ilusão,
leva-o para aonde quer
menos para a razão,
é a essência de se ser

A idade
tem lá dentro a saudade,
dá-lhe para chorar
e para negar a vontade
de voltar a mamar

A morte
tem lá dentro o incógnito,
será o momento de acabar?
ou será o fim e o princípio
de outro ser a germinar?

A religião
tem lá dentro a justificação
para todas as premissas,
há 4200 religiões nesta civilização,
quero ir a todas as missas

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Noite de Natal

Nesta noite apetecia-me
ser menino,
um menino pequenino,
muito pequenino,
tão pequenino como o menino
que dizem ter sido gerado sem pecado
e que foi dado à luz numa gruta
aquecida pelo bafo
de uma vaca e de um burro
lá para os lados de Belém,
o seu pai já era velho
e chamava-se José,
a sua mãe não tinha idade e era virgem,
chamava-se Maria 

Sim, nesta noite apetecia-me
ser menino
como esse menino
que nasceu pobre numa noite como esta,
por sua causa,
alguém marcou na minha frágil testa
de inocente bebé
o sinal daquele artefacto pesado de fé,
de História e de dúvidas,
o sinal da cruz

Que viva esse menino,
esse menino Jesus,
que haja festa,
comam e bebam, não apaguem a luz
nem as fogueiras de Natal,
que haja desafogo e fartura,
não percam a festa
do nascimento de um menino angelical
feito de nuvens de algodão e de açúcar
e que nasceu numa noite como esta,
não, não percam a festa,
empanturrem-se de bacalhau e de peru
e não leiam nem ouçam as notícias
para não estragarem a festa
numa noite como esta,
noite longa e escura,
o sinal do solstício de inverno
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Feliz consoada para todos

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Chegou o Inverno

Hoje, o Sol
está mesmo em cima
do Trópico de Capricórnio
a derramar o seu fulgor cósmico
com o tesão
do solstício de Verão

Isto é,
o Sol está a pôr os cornos
ao Trópico de Câncer
e, como eu vivo a norte dos contornos
desse trópico,
vou ter que sobreviver
ao seu mau humor
e ao seu torpor melancólico
até que o Sol volte para ele
e o incendeie de luz, de calor,
de energia, de suor

E diz-me um amigo traiçoeiro,
vaidoso, fanfarrão
e cheio de dinheiro
- faz como eu,
voa para o Verão

Voa tu para o teu Verão,
eu fico, eu fico por cá
embrulhado no meu roupão
de angorá

Chegou o Inverno,
viva o Inverno

sábado, 19 de dezembro de 2015

Genocídio

Pois é, digo eu,
o Homem não se fartou, nem se farta
de progredir, de crescer,
é um prodígio
da natureza,
mas mata que se farta,
até pratica o genocídio
para garantir a pureza
da sua raça

Afinal, que raio de ser é este
que se chama Homem?

Em 1994
os Hutus mataram 800 mil
Tutsis,
agora mesmo,
está a acontecer o mesmo,
os Hutus estão a matar os Tutsis
e os Dinka estão a matar os Nuer,
e vice-versa

Genocídios sempre houve,
a História relata-os,
mas ler notícias de hoje
que descrevem genocídios
que estão a acontecer agora
no Sudão do Sul e nos Grandes Lagos,
não é História

Afinal, que raio de ser é este
que se chama Homem
e que pratica o genocídio?

O Homem foi criado por Deus,
e foi assim:
Deus estava muito cansado,
tinha terminado de criar o universo
sem a ajuda de ninguém,
estava cansado, mas não descansado,
faltava ainda algo que fosse mais belo
do que tudo o que tinha criado,
e, ao ver-se ao espelho,
criou o homem,
chamou-lhe Adão,
depois, ao vê-lo só e com fome,
tirou-lhe um pedaço da sua costela
e, com ele, fez a mulher,
chamou-lhe Eva ...

Ora bolas,
tive que interromper esta linda história,
alguém me está a chamar mentiroso
e a gritar que só escrevo histórias da treta,
ele diz que Adão e Eva
nunca foram de pele e osso
e que a história é outra:
no princípio, o Homem era sapo,
rastejava no chão fétido
e engolia minhocas,
depois evoluiu para macaco
e começou a andar de pé,
os que continuaram de cócoras
continuaram macaco
e não passaram da cepa torta,
só dormem e comem
do que houver,
deles não reza a História,
enquanto o Homem,
esse sim,
progride, cresce, constrói,
é inteligente, discerne,
chora, ri, domina o frio
mesmo que não hiberne,
compra e vende a alma, o calor,
a natureza,
e, por fim, tenta dominar a morte e a dor
inventando e reinventando um qualquer deus,
ou uma qualquer deusa,
esse é o Homem nu e cru,
é animal inteligente, mas não passa
de um animal e é feroz e selvagem
como os outros animais,
também nasce e morre nu
e também é comido pelo fogo e pelas larvas

Ó tu que interrompeste
a minha linda história
sobre o Homem,
fora daqui, sua peste,
prefiro a minha história
à tua,
o Homem foi criado por Deus
e é bom,
só é mau nalgumas fases da lua

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Viajo no meu corpo

Viajo no meu corpo,
tem asas, tem motor,
por vezes é fortaleza,
por vezes é fraqueza,
mas é o meu corpo,
é meu, é mesmo meu,
não é de mais ninguém,
direito ou torto,
de olhos no chão,
ou levantados para o céu,
a chorar, a rir, a dormir no conforto,
a abraçar um amigo, um irmão,
é o meu corpo,
ele é meu, de mais ninguém

Viajo no meu corpo,
mesmo parado ele está a viajar,
mas acabará por se cansar
um dia, talvez num porto
distante deste lugar,
e, nesse dia, mesmo que queira,
o navio não o deixará embarcar,
ficará no cais a expirar
a última poeira

domingo, 13 de dezembro de 2015

Janela

Hoje acordei ainda era madrugada,
em passos de flanela
fui até à janela,
estava fechada,
corri as cortinas
e abri-a,
um assobio, depois uma rajada,
um cheiro a pólvora
invadiu-me as narinas,
não, não era a guerra,
era o vento
a entrar com o mar
pela minha janela
adentro

sábado, 12 de dezembro de 2015

Ninguém morre à míngua

O galo anuncia
mais uma aurora,
bonita cantiga
có-có-ró-có-có

Colhem-se nos prados
couves e nabiças,
cantam nos cerrados
melros e carriças

As ovelhas pastam
livres ao ar livre,
se os anhos se afastam
largam-se a balir

A tarde traz frio,
recolhe-se o gado,
vai para o abrigo
da noite abrigado

O tacho ao lume,
a lareira acesa,
não há azedume
à volta da mesa

Dorme o povoado
à sombra da lua,
dorme descansado,
ninguém morre à míngua

sábado, 5 de dezembro de 2015

Céu limpo

Foi-se a luz do dia
e já caiu a noite
no meu monte coberto de musgo
e de garrigue,
restam apenas algumas brumas
do crepúsculo,
são ténues nuvens de névoa
que desmaiam nas carumas
e na felpa,
e não protestam

Já caiu a noite
e ergo os olhos para o céu,
está limpo,
tão limpo que até brilha de tanto asseio,
quem o terá limpo?

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Dia da feira

Eu tinha um tacho,
um tacho de barro,
mas esse meu tacho
abriu uma racha
e fiquei sem tacho

E hoje fui à feira,
à feira dos quatro,
com o pé-de-meia
comprei outro tacho,
outra vez de barro

E diz-me um vizinho,
tenho um tacho assim
já muito antigo,
era onde a velhota
fazia a cachola

E lembrei o dia
da morte do porco,
era uma alegria,
todos de borco
a molhar a fatia

De broa fresquinha
no molho de alho,
banha e cebolinha
a guisar no tacho
e mais a carninha

Cortada do reco
já morto e aberto
de pernas para o ar
com o sangue a pingar
para o alguidar

Era uma alegria,
matava-se o porco
e naquele dia
a gente comia
o melhor do porco

Mas só nesse dia,
no dia seguinte
via a salgadeira
a vazar de cheia
de gordo toucinho

A febra e o lombo
serviram de troca,
o toucinho gordo
era mais que um porco
e enchia mais sopa

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Os muros do meu pátio

Veio a noite
e ficou escuro o meu pátio
tão antigo como a força
de quem me terá dado
o primeiro abraço
e de quem, com a mesma força,
empilhou, uma a uma,
estas pedras de calcário
que são agora, uma a uma,
os muros do meu pátio

Veio a noite
e fico a mirar estas pedras,
peço-lhes para me contarem o passado,
calmamente, sem pressas,
porque elas têm muito que contar
e eu tenho vagar
 
Mas elas não falam comigo,
estão mudas,
projectam-me apenas sombras da noite,
não, não acredito que estas pedras sejam surdas