quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Boas Festas

Angústia é uma vereda que finda num beco
onde só moram o escuro e o medo,
lágrimas de angústia são pingos de pez
que queimam e enrugam a face de quem as verte,
angústia é tempo perdido e inerte
angústia é talvez, talvez, talvez ...
... acorde um dia a poder ANDAR e com a mão a mexer

Caros leitores, amigos e amigas,
desejo a todos vós
um Feliz Natal
e Boas Festas em geral
com muitas migas,
pedaços de noz
e outras misturas que não façam mal
e se virem o Feiticeiro de Oz
digam-me

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Conformar

Tenho de me conformar
com a forma como o mar
mostra que é feroz
a bater na rocha
e como é meigo a lamber a areia,
Tenho de me conformar
com a forma como o ar
se mostra veloz
quando é vento
a soprar nos telhados da aldeia
onde mora o meu pensamento

domingo, 11 de dezembro de 2016

Guerras

Sete anos durou a guerra dos sete anos,
entre 1756 e 1763 os principais reis da Europa
conduziram os seus exércitos ufanos
para batalhas sangrentas e sem glória

O Luís XV, da França, e o Frederico II, da Prússia,
lá tiveram as suas razões para se desentenderem,
ganharam aliados, força, astúcia
e exércitos poderosos para se combaterem

A guerra dos sete anos
foi mais uma guerra na Europa,
teve muitas batalhas com muita gente,
redesenharam-se fronteiras na óptica
dos vencedores das linhas da frente,
e, como sempre,
os vencedores e os vencidos assinaram
um tratado

E o povo?, e o povo?, sim, o povo?,
como ficou o povo?
o povo morreu esfomeado,
é sempre assim a guerra,
A minha guerra
contra as sequelas
de um severo avc,
um horror,
dura há cerca
de um ano,
serei eu o vencedor?
espero que sim,
apesar de continuar muito aflito
sem armas e sem pujança,
conto com o meu exército:
amigos, família, calor, fisioterapeutas,
esperança

domingo, 13 de novembro de 2016

Nas margens de um rio

Já sinto o frio
nas margens deste rio
Ó rio, leva-me contigo
leva-me na força da tua corrente
até ao sopé
da colina.
Não te levo, não,
facilmente perdes o pé
e ninguém te dá a mão.
Mas, ó rio
eu levo o meu tripé
O que é isso?
Acho que tens razão,
é melhor não ir
contigo,
o tripé não é barco
e tu és muito rápido
Fico
aqui
nesta margem
a olhar para ti
e a sonhar
na minha
próxima viagem,
quando o meu andar
for visto assim:
"Olhem, ele já caminha!"

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Olá, meus queridos pais

Desculpem-me por não ter ido ontem, 2 de Novembro,
visitar o sítio onde repousam os vossos restos mortais
Não fui porque não pude
e não por falta de virtude

Sabem, a minha vida agora é andar em cais
cada vez mais
escorregadios e, porque não me consigo segurar,
se não tiver quem me ajude,
qualquer dia caio ao mar
Se me faltar a mão de quem me anda a ajudar
se cair não consigo nadar
nem sequer navegar,
depressa ficarei com falta de ar

Nessa altura alguém no cais
ficará a chorar
como eu por vocês,
meus queridos pais,
quando deixaram de respirar

Mas enquanto não chegar a minha vez
continuarei a segurar-me a este cais
embora ainda não consiga andar
sem contar um, dois, três,
e sempre muito devagar
até voltar a renascer
como faz o mar
ao amanhecer

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Ensinem-me

Ensinem-me a remar,
ensinem-me a remar
contra a maré, contra a maré
ensinem-me a andar,
ensinem-me a andar,
a andar de pé, a andar de pé
ensinem-me a ter fé,
a ter fé, a ter fé
ensinem-me a suportar,
a suportar a dor, a dor
e a amar, a amar
seja como for, seja como for
ensinem-me a não desistir,
a não desistir
de passar o Bojador,
de encontrar de novo o meu corpo,
com mais calor
ensinem-me o caminho, o caminho
para ir "além da dor"
e ouço: cresça, cresça, cresça mais um pouquinho,
estique o joelho, estique o joelho, se faz favor
olhe em frente, olhe em frente! 

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Boa noite, doença

ainda estás aí?
queres dar cabo de mim?
Vai-te embora daqui, da minha cabeça,
do meu corpo, das minhas pernas,
do meu tronco avesso,
das minhas mãos perras

Vai-te embora, peço,
por que razão me encerras?
Confesso,
isto é duro como o aço,
"Não desista, mais um passo,
é uma ordem,
continue a lutar e tenha calma",
diz-me a terapeuta
com voz crente
e inteligente

Está bem, continuo em frente
mas por onde andará a minha alma?

domingo, 2 de outubro de 2016

Melancolia

Melancolia
mas que palavra tão melancólica,
soa à almotolia
que dava o azeite que embebia a tocha
da candeia que alimentava de esperança
a minha vista já frouxa
quando eu era criança,
essa candeia que deixava de alumiar
com uma simples corrente de ar

Agora a melancolia
acompanha-me todo o dia,
agora soa a arrelia,
chateia,
tira-me toda a energia
e nem sequer alumia
como a ténue luz da candeia
quando lia e relia
os textos da escola primária

A minha perna esquerda
perdeu toda a energia,
por isso quero voltar à luz incerta
da minha candeia
de azeite lampante
sempre pronta, sempre esperta,
que se punha cintilante
quando a porta estava aberta

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Tudo se repete *

Tenta,
tenta experimentar a felicidade
logo de manhã,
tenta saborear a tarde
que ainda não é noite

À noite,
tenta varrer o escuro
para o alçapão da claridade,
assim não te arrefece,
e nunca esqueças que depois da noite
amanhece,
é outro dia e novamente a luz,
e tudo se repete
______________________________________________________________________________
* Encontrei agora estes versos que publico tal como os deixara em rascunho na manhã de 2 de Fevereiro passado.
Nesse 2 de Fevereiro, terça-feira, à noite, haveria de ter a visita medonha do avc que me mudou a vida sem pedir autorização nem me dar tempo de varrer nada ...
Ar

Olá, caros leitores
Tive alta do hospital,
já lá estava a mais
e vim para casa
para os braços de outros terapeutas,
a minha mulher e as nossas filhas
Agora apetece-me reconquistar Ceuta
e outras 'melilhas'
mas ainda não recuperei o andar
Continuo maneta
e canto sem parar
Eu não quero
um avc tão severo
quero andar, andar, andar
marchar, marchar

Quando inspiro
entra ar
quando expiro
sai ar,
ar, ar ar, ar
deixem circular o ar,
respirar, respirar, respirar
Deixem soprar o ar
ar puro, ar sujo,
e fujo, fujo, fujo
do pessimismo, da derrota,
deixem de poluir o ar
que eu arfo, arfo, arfo
se me falta o ar
Estou farto, farto, farto
da falta de ar,
deixem entrar o ar por aqui adentro
para eu respirar
e acalmar
a força do vento
que é só ar
por vezes quente e cheio de humidade,
e da chuva
que faz estalar a tempestade,
vento que empurra, empurra
e quebra tudo
mesmo o que se agarra
à terra com raízes de verga dura
com garras e pouca parra

Quero andar,
quero mergulhar
no ar em movimento
e nunca vergar
com a força do vento
que me move
com ais de lamento
sempre que chove
na minha varanda
de cimento
Anda, anda, anda,
tenho medo
do desespero
de ficar só
com a minha voz,
mas não ficarei
enquanto tiver uma Luz
que sempre amarei

Mas tenho medo
da voz do ar seco,
do ar manchego
que respirava o Dom Quixote
sempre a gritar e a ditar
o que estava errado e certo
e ninguém lhe roubou o dote
de grande filósofo a cavalgar
no deserto

Quero o ar
o ar do mar
que ventila
a minha janela
e a varanda
e anda e anda e anda
encostado à cancela
ao ritmo da batuta
da chefe da orquestra

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Saudade

Tenho saudade
dos rostos das pessoas
que cirandam pela minha cidade
e da gente que passeia
nas ruas da minha aldeia
Choro de saudade
do amigo
que passava por mim
no Rossio
Choro de saudade
da liberdade
de seguir a alcateia
por montes e vales

Por favor, tirem-me desta cadeia
que me prende o corpo
com correntes de avc e com outros males
Por favor, tragam-me a panaceia
que endireite este corpo torto
Por favor, não me faltes
agora, ó esperança de sal do mar  morto
que ainda não morreu

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Domingo à tarde pelas sete e tal

Domingo à tarde
ainda é fim-de-semana,
mas não estou na praia
nem à sombra
das frondosas árvores do parque,
estou a ser conduzido pela Mariana
para o hospital onde reside agora a minha fronha,
terminando assim o meu fim-de-semana

E vem o vazio
domingo à tardinha
A água do meu rio
continua escondida
mas ainda é rio
apesar da erva daninha
outra vez nas suas margens

Muito obrigado, filhinha,
pelo carinho com que tu e a Luzinha
me conduzem
ao hospital
domingo à tardinha,
pelas sete e tal

Todavia
depois destas curvas
conto encontrar
a minha cura

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

As cigarras

A gritaria
das cigarras
entra na minha enfermaria,
elas arreganham
as suas amarras
com muito tesão,
eu não, eu não,
nem sequer grito,
mas também estou aflito
Se gritasse
não seria ouvido
mesmo se arreganhasse
os dentes do siso

As cigarras
fazem-se ouvir
são chatas
no seu sentir
sentem calor?
também eu
sentem dor?
também eu,
na garganta
e no resto do "corredor"
por onde passa
a massa
do jantar
Elas agarram-se à resina
que é cola com aroma
a terebintina,
eu agarro-me à vida
que ainda me cola
a esta rotina
de doente deficiente a arfar
que perdeu a mola
que o fazia andar

Não, não ouçam
os meus gritos de cigarra
sem resina
mesmo que eles
soem a algazarra
longe da minha janela,
pode ser só tosse
por alergia à flanela
do meu pijama
de pano de vela
esfarrapado pela tormenta

Entretanto na M80
alguém solfeja
I will survive
Assim seja

sábado, 20 de agosto de 2016

Hoje foi outro dia

Hoje foi outro dia
e trocadilhando a poesia
do Chico Buarque
Apesar do avc (de você)
amanhã há-de ser outro dia
mesmo que eu não embarque
na corrente da alegria
com este corpo
tão torcido, tão teso que não parte
amanhã há-de ser outro dia
e talvez num desses dias
acorde de manhã
com força para andar
e para respirar as maresias
trazidas
pelo vento do mar
e então gritarei a valer
"hoje é outro dia"
e virão outras cantorias,
a esperança não pode morrer,
nem desaparecer,
mesmo quando o frio
vier arrefecer
as Olimpíadas do Rio
e congelar o seu húmido arrepio
Desabafo absurdo mudo

Estou a ver os jogos olímpicos
do Rio de Janeiro
Calai-vos,
agora falo eu,
chegou a minha vez,
estou farto de vos ouvir,
de vos ler,
de vos ver a rir,
de vos ver a comer,
de vos ver a crescer
esbeltos
e a saber viver
por serdes mais espertos,
calai-vos e escutai-me,
agora falo eu

Sou um homem
adulto
e ainda tenho quase tudo,
tenho membros, abdómen,
coração, tripas, fígado
mais os outros miúdos,
tenho coluna, nervos, fibras,
músculos,
sim, tenho quase tudo,
e só não tenho tudo
porque não sou como o David
renascentista,
ou como o grego clássico
lançador do dardo,
Ai, gostava tanto de ser como eles,
gostava de ter um alegre e belo rosto
e uma exemplar postura
num entroncado e ajeitado corpo,
um corpo fino no traço e grosso
de osso,
mas não sou como eles,
os jogadores atletas;
sou assim:
cabeça grande e dura
em cima de um pescoço de troglodita
que segura
uma papada de unto
debaixo de uma boca sempre faminta
a reclamar presunto
com uma ingénua expressão de caricatura
que não merece uma moldura,
nem uma escultura

Mas, ao menos sei falar e contar,
(dois e dois são cinco,
sei mesmo contar)
e quanto mais conto
mais me apetece mastigar palavras
servidas a quente directamente do forno,
umas para ler, outras para escrever nas horas mortas
em folhas de papel ou de couves trincadas pelas larvas
das hortas
que eu mastigo, puras ou em migas,
depois de as lavar e cozer ao lume
em grandes panelas que exalam um perfume
de roupas velhas e provocam intrigas
no meu intestino,
para, de súbito,
um bafo absurdo
o deixar tranquilo

De seguida, arregaço as mangas
e aproveito para puxar o lustro
ao orifício das entranhas
da minha carapaça
que adora o luxo
de ser uma carraça
vestida com pele de urso
branco
que vesti por engano

Pronto, já desabafei,
foi um desabafo absurdo mudo,
agora calo-me e volto ao meu mundo,
ao meu mundo real,
sim, volto ao mundo real,
ao mundo dos reis,
porque eu sou Rei
O coro dos sapos deprimidos

Vivemos em sacos viscosos
bem atados e comprimidos,
não há quem se ocupe de nós,
somos os sapos deprimidos

Passamos a vida no lodo
enlameados e esquecidos,
nem sequer servimos de engodo,
somos os sapos deprimidos

Queremos ser como as rãs,
queremos vir dos seus girinos,
são mais ágeis, mais elegantes,
queremos ser sapos bonitos

Refrão:
Estamos fartos de ser sapos,
queremos antes ser ouriços,
estamos fartos de ter papos,
somos os sapos deprimidos

Eu sou um sapo deprimido
metido num saco de pele,
tenho fome e estou ferido,
sirvam-me um pouco de mel

Eu sou sapo e não tenho dentes
para morder quem me pisa
e para afastar as serpentes
que querem a minha barriga

Eu choro muito por ser sapo,
os outros sapos só dão bufas,
mas lá vão enchendo o papo
e não passam por cagufas

Estou farto de ser sapo,
quero antes ser ouriço,
estou farto do meu papo,
sou um sapo deprimido

Serei apenas um sapo bobo
e tenho que gramar
o amargo do fel
e sentir o frio do lodo
a arreganhar
a minha pele

Somos sapos
Mas queremos ser modelos
de animais benquistos,
mas isso é só para os coelhos,
nós somos só sapos deprimidos

Refrão:
Estamos fartos de ser sapos,
queremos antes ser ouriços,
estamos fartos de ter papos,
somos os sapos deprimidos

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Ó lua, enche-te de luz

Ó lua,
porque vais nua
quando alumias
a minha rua
nas noites frias?
Tens luz fraca
só para chatear
quem dorme ao
luar na praça
Veste-te, ó lua
e enche-te de luz
para mostrares bem a desgraça
de quem dorme na rua
O meu casulo e o forró

Estou no meu casulo
e lá de fora
chega-me
a algazarra e o barulho
do forró
de gente alegre aos pulos
que não levantam pó
"Aquela morena gosta de caçulos
e é meiga a dar o colo",
canta o cantor de música nordestina
e vira e vira e vira
manda a concertina
que esta noite ninguém durma só
e vira e vira e vira
cada um a seu gosto
manda a mana Albertina
com lábios de pó-de-arroz

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Gungunhana

Ao meu lado
na outra cama inteligente
está agora deitado
um ser imponente
Parece o Gungunhana

À noite liga a turbina
ressona, ressona, ressona
parece uma sanfona
e não desafina
Como ele só fala crioulo
só o ouço
quando ressona
enquanto eu faço parte da bruma
e não sei se ressono, se tenho sono, se sonho
talvez até nem durma
Uma noite no hospital de São José

Por suspeita de novo avc
fui parar outra vez ao São José
estive uma noite em observação
"O quê, outro avc?
Não pode ser!"
dizem vocês
e com razão

Bom, lá passei pela urgência
no meio da confusão,
No serviço de observação
estava ao meu lado
um doente hemofílico
a beber sangue e factor oito
congelado

Mais longe, naquele espaço acrílico
estava uma rapariga de Portalegre
que tinha desmaiado
na casa de banho
Foi um desmaio breve
e saiu do hospital de Portalegre
com suspeita de um quisto no cérebro,
veio de helicóptero para o São José
Vai ser operada
Eu disse-lhe que iria dar tudo certo
na operação
aparentemente ela ficou descansada
Depois vieram vê-la um irmão
e uma tia
que também lhe disse que seria
uma operação simples, que ela
conhecia várias pessoas
que tinham passado pelo mesmo
e ficaram boas
e lá veio a tradicional
recomendação para ter fé,
esperança e força de vontade

Naquele espaço acrílico
estava também um senhor
que tinha querido acabar com a vida
sem dor
tomou comprimidos e um insecticida
mas não resultou
O enfermeiro perguntou-lhe se ele
sabia porque estava ali
e foi por isso que eu também soube
da sua história:
estava a atravessar um processo de divórcio
não pacífico
e foi parar
àquele espaço acrílico
e queria ir embora
O enfermeiro disse-lhe que a sociedade
não queria que ele voltasse
a fazer a mesma obra
e por isso estava no hospital
entregue ao serviço de psiquiatria

Dormi o resto da noite
e quando acordei não sabia
que já era outro dia

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Espelho *

Ó espelho,
porque me vês velho?
Ó espelho meu,
espelho mau,
porque me vês um calhau
caído do céu,
com rosto humano,
perna de pau
e o resto ao léu?
Vai-te, espelho
não me mires mais,
através do teu reflexo
vejo-me um escaravelho
a empinar um seixo
que não quer rolar
até ao mar
que não vejo
___________________________
* Este espelho existe,
está posicionado hirto e insiste
durante todo o dia
no ginásio
onde faço
fisioterapia,
onde cada passo
que dou
é uma conquista

domingo, 31 de julho de 2016

A minha perna esquerda

Preciso da minha perna
para calcorrear os outeiros
os vales e a charneca,
mas o joelho não estica
e voltei à idade dos cueiros

Ainda não ganhei a guerra
mas hei-de combater até ao fim
para tornar a percorrer
os carreiros da minha serra
a apanhar alecrim
rosmaninho e amoras
com sabor
a açúcar e a mel
e com o ardor
dos picos das silvas na pele
que causam dor
como se avisassem
"Se queres estas amoras
tens de sentir as picas
não levas das minhas iguarias
sem que nesses dedos te firas"
Sim, a silva não é uma lira
ela pica e pica bem
até faz sangue
O silvado
é um enxame de picos
que não quer ser incomodado

Isto a propósito
de eu ir daqui a pouco
ser picado com toxina botulínica
nos músculos que não esticam
Espero não ficar rouco
com a dor que vou sentir
nem mouco com as ordens
que vou ouvir
"Estique o joelho, respire fundo
descontraia os músculos"

E depois nada, só a desordem
do meu corpo torcido
que já não dá pulos

sexta-feira, 22 de julho de 2016


Voltei a casa

Voltei a casa,
só para passar o fim-de-semana,
voltei a casa, mas não voltei a casa,
a casa é a mesma,
a mobília também,
a família também,
eu é que não sou o mesmo,
parece que vim do além
estou como uma lesma
que se lamenta
de ser muito lenta
e não poder morder ninguém

O vento uiva
através da janela
entreaberta
e quando o vento uiva
e não traz chuva
é porque não activa
o coração da nuvem,
não passa de aragem muda
sem vida,
o vento que agora
sopra
dentro de mim
também não tem vida
porque o meu cérebro
deixou de activar
a função de andar
e eu quebro
porque este vento só uiva
e não traz chuva
para despertar
o meu cérebro,
"Tens de esperar
muito tempo.",
responde a LUZ
ao meu lamento.
E este vento, este vento
continua a impor
o seu seco uivo andaluz
que não traz chuva, só muito calor
e sobre mim voa um mosquito
que gostou do meu cheiro a dor,
vai-te embora, mosquito,
que não te posso espantar
porque só tenho ao meu dispor
a mão direita que está a teclar

Desculpem-me, caros leitores, esta desordem de palavras,
elas queriam ser quadras,
mas uma forte aragem mandou às malvas
a geometria
da poesia

quarta-feira, 20 de julho de 2016

O meu urinol

Na cama do hospital
mijo no urinol
debaixo do lençol
mas às vezes corre mal
O apêndice não fica mole
e lá sai uma mijareta
para fora do urinol
e fica molhado o lençol

Depois vem o enfermeiro
ou o auxiliar
e gritam para o quarto inteiro
"O senhor ainda não sabe mijar
para o urinol"

O meu urinol
é um recipiente
de plástico inteligente
"com medidas apropriadas
à função",
diz o enfermeiro ao doente
mas para mim são erradas
porque a minha mão
não prende as amarras
do urinol
e lá se vai a função

domingo, 10 de julho de 2016

França - Portugal

Hoje vou ser patriótico
que ganhe a selecção do meu país
mas não estou eufórico
com a ilusão de ser feliz
que me vendem os que põem os pontos nos is

Sou categórico
se a selecção do meu país
perder hoje
não deixo de ser feliz
que ganhe o que melhor jogue
a bola que não tive
quando era petiz

Vou ver a bola
deitado na cama de um hospital
e pouco ou nada me consola,
não me levem a mal,
por enquanto ainda não perdi o juízo
mas hoje sou quase francês
que seja golo na baliza do Rui Patrício
ou na baliza do gaulês
tanto me faz
Porra, já não aguento tanto bulício
por causa de uma bola
Chega de fogo de artifício
Homo erectus

Já não sou homo erectus
sou homo sentadus
e homo deitadus
porque tenho pernas de insectos
não esticam e os calcanhares
não assentam no chão
"sem fazer isso
não poderás
andar"
avisam-me os terapeutas
que não conseguem controlar
os meus espasmos

Pronto
já não sou homo erectus
fico tonto
só de pensar que já não faço jus
ao grande progresso dos
homens que se levantaram de pé
e evoluíram nesta terra até
a dominar
Sons da rua

Campainhas
portas a bater
lá fora falam e gritam criancinhas
ouvem-se vozinhas
de quem acabou o entardecer

Nesta enfermaria
ouvem-se sons
sons do dia-a-dia
que eu identifico
ao longe mas nunca tão perto
que me afastem
do meu estado de paralítico

Ouço reactores
de aviões
que talvez venham dos Açores
lá dentro vão pessoas
felizes e que esperam
que não faltem travões
ao aterrar em Lisboa

São reactores
com actividade frenética
porventura vêm da América
e não dos Açores
e eu numa atitude patética
imagino-me lá dentro
sentado e sem dores
fora desta posição paralítica

Os reactores
parece que vão à rasca
com vontade de mijar
ou de soltar a casca
vão em pânico
depois de atravessarem
o Atlântico

Ouço comboios
que não saem dos carris
apenas deslizam
transportam trabalhadores
aflitos para não se atrasarem
aos seus empregadores

Ouço os enfermeiros
a falar no corredor
dizem que ganham pouco
querem mais dinheiro
por vezes faço-me de mouco
quando me chamam nomes
por eu andar pouco
ou nada

Já sei
que para voltar a andar
tenho de gritar como Roger Daltrey
na ópera Tommy
"I'm free"
e partir as correntes
que me atam os membros
Mas não quero partir os dentes

domingo, 3 de julho de 2016

O meu novo vizinho

Saiu o meu vizinho,
o da cama ao meu lado,
era divertido,
saiu porque já dava um passo
com o corpo hirto

Saiu e já não ouço
as suas explosões intestinais
estilo "já não posso"
ou "já não aguento mais",
era um colosso

Mas já tenho outro vizinho.
É um convencido, não tem prós,
comenta o que se passa
na TV em alta voz
e não fala baixinho,
durante uma telenovela
ouvi um burburinho
"Grande filha da puta,
esta gaja é uma filha da puta,
cabrona, enganou o primo
matou a irmã com cicuta
e enforcou um gajo
com uma gravata"

Durante um jogo de futebol
ouvi
"penálti, penálti,
seu cabrão!
O árbitro nunca marcou falta
dentro do coração
da área,
não marcou porque é alemão,
isto é tudo uma farsa, nada é como dantes
golo! golo! golo
de Portugal!
marcou o Renato Sanches"

O meu novo vizinho
sabe da poda
sabe tudo da cadeira de rodas
e tem várias para entrega
com todas
as novidades
para todas as idades,
tamanho, etc.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Continuo no hospital
e não evacuo
Por vezes
sentam-me o cu
na sanita, mas as fezes
não saem, antes recuam
é um recuo que parece um amuo

Quem me ajuda?
Tenho de comer fibras
e beber muita água,
diz-me a enfermeira nariguda

Está bem,
digo eu,
vou fazer isso
Tenho a sensação de
que sou um ouriço

Adeus, caros leitores
até à próxima
vou ver se consigo
sair do cortiço

domingo, 12 de junho de 2016

O meu tempo

Saí do tempo
entrei num túnel
sem luz nem vento
Na minha enfermaria
não sopra a ventania
Quando sairei?
não sei
talvez um dia
volte a saborear
o nascer do Sol
o canto da cotovia
o bater do mar

domingo, 5 de junho de 2016

Curry

Diz-me a minha mulher
"Para a semana
vais para o Curry Cabral"
E corri, corri, corri
para o Curry Cabral
tal e qual
não, tal e qual, não
trouxeram-me sentado
na cadeira da Encarnação
Vim sentado do lado
para onde me pende
o corpo
sem conforto

Mal cheguei ao Curry
fiquei logo deitado
noutra cama
que não pedi
Deitado, não, colado,
não conto o que sentia
O Curry tem muita fama
na qualidade da fisioterapia
esperança, esperança, esperança

terça-feira, 31 de maio de 2016

Para o António de Campolide

Olá, caros leitores,
hoje não vou escrever sobre as minhas dores,
estão fartos de saber quais são, não é?
mas não tenham dó
Hoje escrevo para agradecer ao meu amigo Tó,
o António de Campolide,
que me escreveu o seguinte
quando me visitou nesta minha lide
ao perceber, como médico,
que a morte me estava a fazer um convite:

"Fica! Não desistas
 Corre o mundo como um rio
 Que a vida quer mais conquistas
 e de ti um desafio"

Diz o Tó ainda
que eu lhe segredei em surdina
"Tira essa mancha que sinto dentro da minha cabeça"
Depois ter-lhe-ei pedido água,
aliás,
dizem-me que nessa altura eu estava sempre a pedir água
e não a podia beber
porque me engasgava
e sobre tudo isto ele escreveu-me o seguinte:

"Talvez seja eu que um dia e em posição supina
água e afecto te peça
pois que no embalo do tempo não há instantes em vão
e a vida em cada momento tem sempre a sua razão."

Obrigado, Tó,
quero que saibas
que pelo menos agora
já posso beber água à vontade
pela minha mão
e desejo que nunca tenhas a sede
que  eu senti então

sábado, 28 de maio de 2016

Hipertonia

O meu corpo está em regime de hipertonia,
é um bom nome para um restaurante ou para uma cadeia
de supermercados, ou para uma pastelaria

Mas por causa dessa hipertonia
a minha fisioterapia
é muito dolorosa,
cada movimento da perna
é acompanhado de um grito de dor
aiiiiiiiiiiiiii aiiii ai ai ai ai ai
a perna parou e o músculo berra
não estica, não dobra, não sai
do sítio, não quer subir a serra
- para cima, para baixo, vai, vai,
grita a terapeuta como dona da guerra,
e a perna não sai, não sai
de baixo, não descola da marquesa

O mesmo se passa
com o meu esquerdo braço
não faz nada
e pesa como um maço,
só atrapalha
e não sai de cima,
nem de baixo,
espero que a tizanidina
acabe com mais esta baixa
na minha auto-estima

Para cima, para baixo,
vai, vai, vai, vai,
Preciso de uma massagem
para fazer esta viagem
vai, vai, vai, vai,
e ficar na paragem
Encontro com a morte

Quiseram o fado
e a minha sorte
que tivesse há pouco encontrado
a senhora morte
É uma senhora de figura humanóide
esguia e vestida de preto
parecida com um espermatozóide
Tem cabeça pequena, muito pequena
Estava encostada ao gaveto
entre a empena
e a porta da enfermaria
onde eu dormia
Estive toda essa noite de quarentena
tinha alguém a olhar para mim
fixando no meu rosto
a luz de uma lanterna
Eu disfarçava não ser o alvo,
talvez não estivesse salvo,
sentia-me mal, muito mal
À beira da porta, branca como a cal
a morte sorria para mim
Mirei-a bem, voltou a sorrir
e aí tive a certeza de que era o seu alvo
Vi-lhe os dentes manhosos de marfim,
manteve-se direita e eu não podia fugir
estava colado à cama como as flores
jazem num cuidado jardim
inundando-o de cores

Pelos vistos não morri
nessa noite
De manhã o meu vigilante
levantou-se afoito
e disfarçou, saiu do quarto elegante
como quem diz
"Terminou o meu turno, despego às oito;
ele respira bem apesar de ainda ofegante,
ainda não foi desta que este esticou o dito"

A morte esfumou-se com os primeiros fluxos
das luzes do dia
que entravam por um buraquito
da janela do hospital dos Capuchos
mas como estava muito aflito
decidiram os médicos bruxos
que eu deveria ir de maca
para o hospital de Santa Marta
com a minha carcaça
entubada, sem dor
para continuar a respirar
ao ritmo de um ventilador

Nas noites seguintes
continuei a resistir
ao sorriso dos dentes de marfim
da figura de preto sinistra
que continuava a sorrir para mim
e não me largava
nem no Santa Marta

Safei-me
com grandes sequelas,
queimei as velas
que orientam e sustêm
os músculos
do meu corpo

Do lado esquerdo
estou como morto
mas já perdi o medo
de por enquanto não sentir qualquer progresso
Adeus, caros leitores,
até ao meu regresso

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Flores amarelas

Flores amarelas
no meio de um prado verde
são fonte de calor que arde nas telas
ou os olhos de alguém
que quer ver-te

Ou foi o pincel que caiu
das mãos do pintor
e manchou o verde puro
que era a única cor
que o pintor queria
ver no seu futuro

Flores amarelas
no meio de um prado verde
são aguarelas
que não jogam com o painel
ou serão os olhos de alguém
que quer ver-te
a pintar com o teu pincel?
Ou serão apenas focos na paisagem
do fim de tarde que queres passar
para o papel
sem conseguires
porque não estás a ver o mar?
E mesmo que te vires
também não o verás
E se aonde estás
não te chegam as flores amarelas
lavadas com aguarrás
imagina que elas
são ondas perfeitas do lamento
de um mar cheio de velas
que navegam ao sabor do vento


terça-feira, 17 de maio de 2016

Tão longe

Estou tão longe de lá,
lá onde corria e pulava,
onde dormia e sonhava
Ó correntes que me prendem aqui
desliguem-se e deixem de apertar
o meu coração e o meu rir

Estou muito longe de lá, onde mora
quem me embala, estou preso a uma cama
e a quatro rodas, quero ir embora
para ao pé de quem me ama
Bomba-relógio

Tinha uma bomba dentro de mim,
fazia tic tac tic tac,
rebentou fez atchim
e o meu cérebro fez poc, pac pac pac
resultado: fiquei paralisado
do meu lado esquerdo e dói, estala
está rijo como uma estaca
de ferro e não verga nem se rala
com a minha vontade

Podia ser pior, podias ficar sem memória e sem fala
diz-me alguém com amizade
é verdade,
mas a minha realidade também é má,
estou preso e não dá
nem para lá nem para cá

sábado, 14 de maio de 2016

Uma luz

Um, dois, três, quatro
é o barulho dos passos
da minha mulher
que me visita no quarto
Quando ouço esses passos
fico aliviado
e todos os dias os ouço
São como uma luz que ilumina o meu triste fado
de paralisado
Ela prepara-me o almoço
E pronto, já dizem que sou muito mimado
por ter esta luz
que adoça a minha cruz

[A minha mulher chama-se Maria da Luz.]

sexta-feira, 13 de maio de 2016

À tardinha aquela aldeia

Aquela aldeia
que eu vislumbro
no sopé de um monte
é o meu mundo
é o meu horizonte

À tardinha
naquela aldeia vizinha
circulam carros
vivem pessoas
nas suas casinhas
vivem em casas brancas
de vermelha telha

Os prados são verdes
verdes de erva verde e fresca
os prados têm redes
não passeiam lá animais de brinco
com fome de verde
para o transformarem em leite branquinho

Queria passear lá
pisar aquele verde
imaculado, da cor da planta do chá
e por tanto querer passear lá
já prometi
que hei-de pisar aquele verde
um dia
naquela aldeia
ao entardecer

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Inveja

Pela primeira vez na minha vida
senti inveja de alguém
que passou por mim a andar
de forma elegante e altiva
Ao pé dele, sou ninguém
estou sentado numa cadeira de rodas a cismar
e a desenhar uma ideia pouco criativa
que não vale um vintém

Inveja, o mal do homem
pecado mortal
Que ninguém passe fome
é o que desejo a quem vive
neste vale
Que ninguém se prive
da água, do alimento e do sal
e de outros temperos
que não façam mal

Na fila de espera para a fisioterapia
ao meu lado estava uma
velhinha que me pedia
ajuda, ajuda, ajuda
Eu disse-lhe "não posso
ajudá-la", aconselhei-a
a pedir a Deus que a acuda
e dei-lhe a minha mão,
depois mirei-a
no rosto:
não era feia, senti que
ficou no momento mais aliviada
Disse-me que viveu com muito gosto
que teve uma vida airada
e que agora não tinha nada

A velhinha deixou-me a chorar
e eu nem sequer tinha um lenço
para me assoar

sábado, 7 de maio de 2016

Contratempos

Mais contratempos que atrasam
a minha recuperação:
uma luxação no ombro
na perna um trombo
Por vezes não encontro a razão
para tanta sombra
Dias e dias a olhar para o tecto do quarto
a pensar, a pensar no meu azar
Meu Deus, estou farto, farto, farto
de não poder andar

Felizmente tenho ajuda
de muita gente
Que não me falte esta ajuda
especialmente
da minha mulher
e das minhas filhas
a quem muito quero
Adeus, senhora Maria das Dores

A senhora Maria das Dores
foi transferida
e não queria
Disseram-me que a levaram
às 4 da tarde em ponto
sem lhe dizerem para onde ia
Chorou toda a manhã

A senhora Maria das Dores
era minha vizinha
e já muito velhinha
sofria com muitas dores
nas suas perninhas
cheias de feridas às cores
conversava muito bem
tinha um discurso muito lógico
falava muito dos filhos, ambos pilotos

A senhora Maria das Dores
deixou de ser minha vizinha
às 4 da tarde
Não tive tempo de lhe oferecer flores
levaram-na sem eu ver
às 4 da tarde enquanto eu dormia
deveria ir a chorar e a gemer com dores

Adeus, senhora Maria das Dores
até um dia

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Algália

Tiraram-me ontem a algália,
último cateter
da minha parafernália,
bebi água do Zêzere
e mijei na fralda

Não fui a tempo
de pedir o urinol
não contive o êmbolo
que trabalhou como um fole

É normal, diz a enfermeira
agora tem de se habituar
sem a algália-torneira
até conseguir aguentar
a torrente mijaneira

sábado, 30 de abril de 2016

Ó partes de mim

que estais a dormir
acordai
tende pena, ouvi a a minha voz
acordai, eu quero voltar a rir
preciso de vós
porque me abandonais?
acordai
preciso muito de vós

Ó partes de mim
que já adormecestes para o sono eterno
antes do meu fim
quero-vos de volta
deixai de ser peças de ferro
quero voltar a andar à solta
quero, quero, quero
quero-vos de volta
acordai

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Uma tarde no hospital

Passei a tarde no corredor das urgências
do hospital de Torres Vedras
ao meu lado um jovem finlandês
a queixar-se com dores em inglês
tinha ferido o corpo e as pernas
a fazer surf e nunca mais chegava a minha vez
o médico viu-o e também falou em inglês
foi muito bem tratado
e nunca mais chegava a minha vez

Do outro lado estava um idoso
que pedia ajuda a gritar pelas enfermeiras
apareceu perto dele uma pessoa
que seria seu filho, chama-se Diogo
e disse: então o pai caiu outra vez
você está sempre a cair das cadeiras
você sabe muito, lembre-se do mal que me fez
e foi-se embora, nem disse adeus
O senhor idoso começou a gritar
com aparente falta de ar: vem cá, Diogo
vem cá, meu filho quero falar contigo
chamem o meu filho, vem cá, Diogo
gritava o senhor idoso
vem cá, Diogo
quero falar contigo agora
mas o Diogo não veio

Entretanto levaram-me para a tac
mudaram-me da cadeira para a maca
que entra no aparelho
e alguém me disse:
agora vai levar uma radiação
e fica com uma cabeça nova, sem ressaca

Lá fui eu aos trambolhões
para dentro do aparelho
não senti os apalpões
do aparelho-escaravelho
que viu o meu interior
como vê um espelho
o nosso exterior

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Por aqui

Por aqui vou estando
umas vezes optimista
outras pessimista
os que por aqui andam
como eu não andam
são empurrados pela anca
e todos desejam
ir para o Alcoitão
uns vão
outros não

Mas ainda estou vivo
e acredito em quem me dá a mão
mesmo não sendo o Alcoitão

domingo, 24 de abril de 2016

O meu Anjo da Guarda

Desta vez
o meu Anjo da Guarda
não me protegeu do azar,
tive um avc
e fiquei sem andar

Ó meu Anjo da Guarda
não me fujas
guarda-me do medo
se puderes volta atrás
e dá-me engenho
para reaprender a andar

Não me deixes cair
anima-me e faz
com que a minha perna
ganhe força para subir
a caverna
onde me encontro

Pronto,
ó meu Anjo da Guarda
hoje não te peço nada mais
volta atrás, volta atrás
que a minha cura tarda

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Ana Luísa

é a minha fisioterapeuta
e avisa
"Não perca o ânimo e a alegria
em cada dia
há uma pequena conquista"

Fisio
terapia
é um alívio
há alegria
há movimento
no ginásio
mas também
há lamento
de quem
se vê
preso
depois
de um avc

É assim mesmo
nada a fazer
há que aguentar
saber esperar
e viver
mesmo sem saber
se voltarei a andar

terça-feira, 19 de abril de 2016

A cama

A minha cama é eléctrica,
frenética
não me deixa
ir embora
levanta e baixa
e dobra
carregando num botão
que está sempre à mão

É uma cama simpática,
apática
acho que gosta de mim.
Quando acordo
estou sempre torto
mas a cama não tem culpa,
fui eu que dei a volta
diz-me ela
com certeza absoluta
E depois cá me aguento
quando me sentam na borda
à força, em forte tormento

Dói-me o corpo todo,
deitado ou em pé
parece uma rocha
que racharia
com um simples pontapé

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Estou

Estou colado a uma cama,
só me levantam para o cadeirão,
dizem que faz bem e que traz chama
ao corpo sem articulação

Estou a fazer fisioterapia,
todos dizem que resulta
e que vai acordar um dia
a minha perna adulta
e este braço sem vida

Estou derrotado,
o inimigo foi forte demais
mas continuo soldado
que quer vencer a guerra
e aguenta os maus sinais

A espera por dias melhores noutro ar
é partilhada pela família
e pelos meus amigos.
Dão-me a mão
e força para acreditar
na plena recuperação

Estou assim. Pronto.
A minha existência é monótona
e os meus relatos também.
Desculpem-me, caros leitores,
muita saúde para todos.  

domingo, 10 de abril de 2016

Lutar

Olá, amigos leitores,
é muito duro
não poder andar
no meio das flores.

O meu avc foi muito forte,
tirou-me o andar
e a mão esquerda
mas continuo a lutar
para recuperar a perda.

Quero voltar a andar
quero voltar a saltar a cerca
e ir a pé até ao
meu segundo andar. 

Vai levar tempo,
muito,
mas não desisto de lutar
e de ter paciência.
Não quero que o meu forte avc
me vença.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Hematoma avc
Ora toma
Um hematoma
Ficas sem o braço esquerdo
E sem a perna esquerda
Estou cheio de medo
De não voltar
A ser quem era
Por agora continuo preso
A uma cama hospitalar

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

[Por motivos rebeldes à sua vontade, o Vitório Rei vai estar algum tempo sem acesso a instrumentos de escrita. Hoje pediu-me que deixasse aos seus leitores os versos que com forte emoção e imerecido privilégio aqui reproduzo.
Serei fiel às palavras que ditou para o meu bloco. Do mesmo modo, conto respeitar-lhe o "estilo" de apresentação.
Em seu nome, muito obrigado.
08.Fev.2016.
Um amigo]
Corpo-refinaria

Olá, pessoal, bom dia
estou na enfermaria
sou um corpo-refinaria

Produzo krakatoa
da cor da broa

Estou todo entubado
mas hei-de sair daqui curado

Até breve

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Suor de menino

Vejo meninos mineiros andantes,
carregam pesados sacos de lama
tirada das entranhas da savana,
é lama de sangue com diamantes

Vejo meninos a coser as bolas
de futebol, as mãos e a agulha
não adormecem, e fura e fura,
os calos já esconderam as bolhas

Vejo meninos que fazem tijolos,
com os pezinhos amassam a massa,
os rostos e as mãos pedem carinho

Vejo ainda mais meninos sem colos
que não fugiram à mesma desgraça,
terá este plasma suor de menino?

sábado, 30 de janeiro de 2016

Canto à dor

Confrange-me a dor,
a minha e a alheia,
ela faz sofrer,
e sofrer é mais confrangedor
quando é dor traiçoeira,
quando é dor que dói
e não deixa cor,
quando é dor
que não diz onde dói,
quando é dor que mói
só para fingir que não é dor

Mas é mesmo dor,
ela aparece enredada em ânsias,
perdas, solidão, desânimos, tristezas,
angústias, medos, fraquezas,
aparece e começa logo a minar as esperanças
de quem sofre,
aparece e não desaparece, é dor teimosa,
e não alivia, e não abranda,
nem com uma poção milagrosa
de valeriana

Coitado do sofredor,
ainda tenta fingir a dor,
"a dor que deveras sente",
mas quando lhe perguntam
se navega na crista da onda,
ele desmente,
desmente e confessa com vergonha
que não consegue domar a dor
que o atormenta

Canta, ó sofredor,
canta a tua dor e o teu pranto,
canta, ó sofredor amigo,
canta, canta, que eu também canto
contigo

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Rouhani não pode ver nus

Ele não pode ver nus,
nem vivos, nem mortos,
nem estátuas, nem pinturas

Ele é o Presidente do Irão
e está de visita a Roma,
por ele, a cidade eterna
cobriu com cobertores
as suas estátuas nuas,
ai se ele entra numa Igreja,
que horror! credo!
vai ver um homem pregado na cruz
quase nu

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Temos Presidente

O Baltazar teve um filho
e chamou-lhe Marcelo,
o nome do padrinho

O pai foi salazarista
e o padrinho teve uma primavera só para si
quando foi o nosso Chefe,
até chegou a conversar connosco em família,
nós à volta da fogueira e ele na TV

Agora o filho e afilhado Marcelo
vai ser o nosso Presidente,
e vai sê-lo
porque também habituou a gente
a ouvi-lo e a vê-lo
na TV a conversar em família,
e até tinha jeito,
se ele quisesse, podia ser uma estrela
da TV,
mas não quis,
quis antes ser nosso Presidente

Que tenha muito sucesso
Senhor Presidente Marcelo,
e, já agora, deixe-me aconselhá-lo,
não nos sirva nenhuma Vichyssoise

sábado, 23 de janeiro de 2016

Guerras

Guelfos e Gibelinos

Os Guelfos queriam ser governados pelos papas,
os Gibelinos pelos imperadores,
combatiam-se ferozmente com muitas armas,
houve vencidos, houve vencedores,
muitas mortes, sangue, saques, raptos, batalhas

Nesse tempo viveu Dante em Florença,
cidade dominada pelos Guelfos
que se engalfinhavam contra os Gibelinos
e também entre eles,
os Guelfos brancos contra os Guelfos negros,
uns moderados, outros assassinos

Dante era um Guelfo branco,
em 1301, os Guelfos negros
derrotaram os Guelfos brancos,
Dante teve que fugir de Florença
para não morrer,
nunca mais voltou,
morreu em 1321 exilado em Ravena,
Guelfos e Gibelinos continuaram a guerra,
Dante deixou-nos a Divina Comédia

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Alexander Litvinenko

O meu sonho de criança
era ser espião,
um espião duplo com muita manha
a transitar entre o oeste e o leste,
entre a federal Alemanha
e a democrática Alemanha,
a correr como uma lebre
nos cais da estação de Friedrichstrasse
que dividia Berlim Oeste de Berlim Leste
nos tempos da guerra fria com graça

O Litvinenko era espião,
talvez só dum lado,
talvez duplo e cheio de razão,
mas Litvinenko, esse coitado,
morreu deitado numa cama de um hotel
de Londres,
morreu cheio de veneno o Litvinenko,
do pior que há, morreu amarelo
cheio de polónio e de dores,
e já não havia
guerra fria

Morreu o Litvinenko
há dez anos,
os ingleses dizem agora que foi
o Putin que o mandou matar,
este diz que não,
eu gostava tanto de ser espião

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Davos

Davos
é, por este dias, terra de neve
e de favos de mel
para quem não paga o que deve
aos trabalhadores explorados
e que fazem desandar o carrossel
como escravos

Davos
é, por estes dias, terra de neve e de luxos
para os que escondem os seus lucros
nos bancos atafulhados
dos paraísos fiscais que lavam e branqueiam

Em Davos
por estes dias
também se pavoneiam
os ilustres convidados,
são economistas, sociólogos, políticos,
são todos amigos,
são todos patetas

Em Davos
por estes dias
não há lugar para poetas

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Que não me falte o ar

Estou aqui muito longe
do sítio onde correm águas cristalinas
e onde as musas bailarinas
enchem de pétalas os seus potes de bronze

Estou aqui e também estou longe
daquela pradaria coberta de papoilas vermelhas
onde pastam cavalos e ovelhas
sem se preocuparem onde acaba o horizonte

Estou aqui e daqui não fica longe
o sítio onde cai neve branquinha,
quero ir para lá a voar na minha asinha,
e se ela quebra?, virá logo ao meu encontro
o incansável Caronte

Estou aqui neste dia de manhã
com uma forte vontade de embarcar,
mas não vou embarcar,
vou, antes, ficar neste chão fofo de lã,
que, ao menos, não me falte o ar

sábado, 16 de janeiro de 2016

Noite estrelada

Noite fria, noite estrelada,
mas que imensidão tão quieta,
tão muda, tão profunda, tão sagrada,
tão secreta,
tão cheia de brilhantes,
por que razão brilhas
ó imensidão,
se não me dás os teus diamantes,
nem as tuas safiras?

Noite fria, noite estrelada,
tudo é imenso
e eu tão pequeno, tão quedo,
tão pouco, tão quase nada,
sinto-me um brinquedo
nas mãos de uma entidade
que se diverte com o infinitamente grande,
com o infinitamente pequeno,
com o efémero, com o eterno,
que se diverte com o meu medo
de ser e depois não ser

Sim,
sou um brinquedo
deste universo,
mas, brinquedo por brinquedo,
queria antes ser estrela,
mesmo que fosse pequenina,
uma estrela de pau de canela
a iluminar uma luazinha
verde e bela
habitada por princesas e príncipes,
na minha luazinha sempre a luzir
a vida seria muito feliz

Mas não sou estrela,
não, não sou estrela,
e, apesar de ter este céu
ao alcance do meu olhar,
não o consigo alcançar,
e desespero, e desespero,
e desespero ...

Digam-me que o céu
não é assim tão belo,
digam-me que ele é uma ilusão
que me é mostrada pelo poder imenso
do vazio da escuridão,
digam-me ... digam-me ...

Noite fria, noite estrelada,
tudo tão imenso e eu nada

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Mente

A mente que mente
e desmente
nunca deixa de ser uma mente
que mente,
e se não mente,
mente se desmente

Uma mente que mente
e que não desmente
perante o evidente
é uma mente carente
de um soco a quente

Uma mente que não mente,
mesmo tendo pendente
um cutelo ou uma corrente,
é uma mente potente

Uma mente que diz à gente
que o nosso tempo é uma tangente
entre o nascente e o poente
e que depois entra no eternamente
para sempre
é uma mente de um ente vidente,
talvez um dia alguém volte do tempo
que corre para lá do poente
para nos dizer se o vidente mente,
ou se o vidente não mente

Uma mente de um génio
que gera o belo e o sublime
é um balão de oxigénio
que nos inspira e redime

Uma mente que diz à gente
que nunca mente
é uma mentira,
eu diria

E quando eu minto,
digo o que diz o político,
ou o cínico,
digo:
não confirmo nem desminto

E agora?
agora vai uma aguardente,
ou um chá de menta,
está na hora
de dar um pouco de pimenta
a uma mente deprimente

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Mais um serão

Mais um serão com amigos de longa data,
como entrada,
bebemos alvarinho fresquinho
acompanhado de um paté gostoso e macio,
um mimo

Também estava muito bom
o cabrito no forno
preparado pela anfitriã
sempre alegre e hospitaleira,
ainda mantém aquela tez sã,
a cor da serra que lhe deu eira e beira

Falámos da Alfândega,
de outros amigos com a mesma panca,
de anseios que ainda temos,
do que estudamos, do que lemos,
do medo de não aguentarmos a retranca

Um dos amigos anda a estudar
hebreu clássico,
eu não lhe quero ficar atrás,
vou estudar aramaico

sábado, 9 de janeiro de 2016

A bomba H do Kim

A bomba H é como uma estrela,
a sua energia resulta da fusão
de átomos de hidrogénio,
originando átomos de hélio,
isto disse um cientista na televisão
com ar de génio

Mas a bomba H não é uma estrela,
digo eu, a gritar,
a bomba H não passa de uma panela
fabricada pelo Homem
onde cozinha um poderoso veneno
preparado para explodir e para matar
muita gente ao mesmo tempo,
espalhando o seu intenso calor termonuclear

Repito,
a bomba H não é uma estrela,
as estrelas brilham no Céu
e a bomba H é para destruir a Terra,
as estrelas compõem o Céu,
a bomba H pode descompor a Terra
e mandá-la pelos ares,
sim, a bomba H não é estrela,
é uma arma de guerra
de destruição maciça
inventada pelo Homem
para se autodestruir

- Nada disso,
dizem os homens guerreiros que têm
há muito tempo bombas H no armazém,
- elas não são para matar,
são só para dissuadir e para acalmar

Calem-se, seus hipócritas,
seus trapaceiros,
dizem isso agora
porque o Kim, o famoso Kim,
o guerreiro dos guerreiros,
diz que também a tem,
calem-se, seus hipócritas,
destruam as vossas bombas
e apaguem todas as fórmulas físicas
e químicas que são demoníacas,
calem-se, foram vocês que deram ao Kim
essas fórmulas,
calem-se, seus hipócritas

E, apesar das vossas dúvidas
manhosas,
eu acho que o Kim
tem mesmo a bomba H,
aliás,
ele é a bomba H,
ou melhor,
ele é o Homem Bomba,
como sois todos vós
que fabricais e que guardais bombas,
quem me dera poder partir-vos a tromba

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Homilia

Anoitecia naquela aldeia perdida
num planalto de granito,
chovia e fazia frio,
o sino da torre badalou quase surdo,
foi o sinal de que já estava tudo recolhido
debaixo das telhas de canudo

Não havia luz para iluminar as vidas
e a única telefonia sem fios
da aldeia não tinha pilhas,
a próxima estava a milhas,
só havia notícias
à saída da missa

Depois de comidas
as migas,
deitaram-se os corpos nos leitos de ferro
com colchões de palha e de camisas,
um homem macho e bruto
saltou para cima do corpo aberto
da fêmea mulher e espremeu o seu fruto

O macho homem adormeceu logo,
a fêmea mulher ainda foi amamentar o filho
mais novo,
e assim se apagou o fogo
que ardia no seu interior mais íntimo

Os outros três filhos já dormiam,
adormeceram com frio e a chorar por mimo

Temos que suportar esta vida de sacrifício
para merecermos o paraíso,
pregava o padre na homilia

domingo, 3 de janeiro de 2016

Adeus, Presidente

Ele despediu-se
a falar de incertezas,
estava bem vestido,
melhor seria estar despido
das suas absolutas certezas
que, desde 1985, nos tem pregado,
claro que, do que correu mal,
ele não é culpado
de nada,
os culpados não lhe deram cavaco

Parece que nasceu
num dia de nevoeiro,
não se via a cotovia
nem o canteiro,
em vez de hortelã
colheram ortiga
e deram-lhe a poção
errada

Adeus, Presidente

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Feliz 2016

Feliz 2016
para mim, para vós,
para os ricos, para os pobres,
para os velhos, para os novos,
para os fracos, para os fortes,
para os que não têm voz,
para as ovas, para os ovos,
para todos os povos

Feliz 2016
para vós que governais a grei
e que criais e aplicais as leis,
aumentai os decibéis
da justiça e da verdade,
desandai os carrocéis
que espalham a felicidade,
acabai com as guerras
e com os dogmas cruéis,
cobri antes o mundo de paz
e de anéis

Feliz 2016
para os banqueiros que nos lixaram
e para os políticos que com eles privaram
e que deles receberam muitos miminhos,
aconselho-os a não saírem de casa,
a rua está assombrada, vêem-se submarinos
a voar e das portas e das janelas
saem sons aterradores
de orquestras a tocar tachos e panelas,
fiquem, pois, quietinhos à lareira a rezar,
assim não partem as canelas,
nem perdem a voz

Feliz 2016
para vós fabricantes e traficantes de armas,
de drogas e de falsas felicidades,
podeis continuar a provocar guerras e desgraças,
ninguém vos fará mal, mas eu rezo todos os dias
para que todas as armas ganhem ferrugem e bolores
e que os explosivos só espalhem coloridas flores,
sim, ainda não perdi a esperança nas minhas utopias

Feliz 2016 para todos
e também para os deuses
que habitam o Céu,
que haja paz entre eles
e que espalhem essa paz pela Terra
enterrando o terror
que os guerreiros homens
semeiam em nome deles
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Feliz 2016 para todos