sábado, 30 de janeiro de 2016

Canto à dor

Confrange-me a dor,
a minha e a alheia,
ela faz sofrer,
e sofrer é mais confrangedor
quando é dor traiçoeira,
quando é dor que dói
e não deixa cor,
quando é dor
que não diz onde dói,
quando é dor que mói
só para fingir que não é dor

Mas é mesmo dor,
ela aparece enredada em ânsias,
perdas, solidão, desânimos, tristezas,
angústias, medos, fraquezas,
aparece e começa logo a minar as esperanças
de quem sofre,
aparece e não desaparece, é dor teimosa,
e não alivia, e não abranda,
nem com uma poção milagrosa
de valeriana

Coitado do sofredor,
ainda tenta fingir a dor,
"a dor que deveras sente",
mas quando lhe perguntam
se navega na crista da onda,
ele desmente,
desmente e confessa com vergonha
que não consegue domar a dor
que o atormenta

Canta, ó sofredor,
canta a tua dor e o teu pranto,
canta, ó sofredor amigo,
canta, canta, que eu também canto
contigo

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Rouhani não pode ver nus

Ele não pode ver nus,
nem vivos, nem mortos,
nem estátuas, nem pinturas

Ele é o Presidente do Irão
e está de visita a Roma,
por ele, a cidade eterna
cobriu com cobertores
as suas estátuas nuas,
ai se ele entra numa Igreja,
que horror! credo!
vai ver um homem pregado na cruz
quase nu

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Temos Presidente

O Baltazar teve um filho
e chamou-lhe Marcelo,
o nome do padrinho

O pai foi salazarista
e o padrinho teve uma primavera só para si
quando foi o nosso Chefe,
até chegou a conversar connosco em família,
nós à volta da fogueira e ele na TV

Agora o filho e afilhado Marcelo
vai ser o nosso Presidente,
e vai sê-lo
porque também habituou a gente
a ouvi-lo e a vê-lo
na TV a conversar em família,
e até tinha jeito,
se ele quisesse, podia ser uma estrela
da TV,
mas não quis,
quis antes ser nosso Presidente

Que tenha muito sucesso
Senhor Presidente Marcelo,
e, já agora, deixe-me aconselhá-lo,
não nos sirva nenhuma Vichyssoise

sábado, 23 de janeiro de 2016

Guerras

Guelfos e Gibelinos

Os Guelfos queriam ser governados pelos papas,
os Gibelinos pelos imperadores,
combatiam-se ferozmente com muitas armas,
houve vencidos, houve vencedores,
muitas mortes, sangue, saques, raptos, batalhas

Nesse tempo viveu Dante em Florença,
cidade dominada pelos Guelfos
que se engalfinhavam contra os Gibelinos
e também entre eles,
os Guelfos brancos contra os Guelfos negros,
uns moderados, outros assassinos

Dante era um Guelfo branco,
em 1301, os Guelfos negros
derrotaram os Guelfos brancos,
Dante teve que fugir de Florença
para não morrer,
nunca mais voltou,
morreu em 1321 exilado em Ravena,
Guelfos e Gibelinos continuaram a guerra,
Dante deixou-nos a Divina Comédia

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Alexander Litvinenko

O meu sonho de criança
era ser espião,
um espião duplo com muita manha
a transitar entre o oeste e o leste,
entre a federal Alemanha
e a democrática Alemanha,
a correr como uma lebre
nos cais da estação de Friedrichstrasse
que dividia Berlim Oeste de Berlim Leste
nos tempos da guerra fria com graça

O Litvinenko era espião,
talvez só dum lado,
talvez duplo e cheio de razão,
mas Litvinenko, esse coitado,
morreu deitado numa cama de um hotel
de Londres,
morreu cheio de veneno o Litvinenko,
do pior que há, morreu amarelo
cheio de polónio e de dores,
e já não havia
guerra fria

Morreu o Litvinenko
há dez anos,
os ingleses dizem agora que foi
o Putin que o mandou matar,
este diz que não,
eu gostava tanto de ser espião

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Davos

Davos
é, por este dias, terra de neve
e de favos de mel
para quem não paga o que deve
aos trabalhadores explorados
e que fazem desandar o carrossel
como escravos

Davos
é, por estes dias, terra de neve e de luxos
para os que escondem os seus lucros
nos bancos atafulhados
dos paraísos fiscais que lavam e branqueiam

Em Davos
por estes dias
também se pavoneiam
os ilustres convidados,
são economistas, sociólogos, políticos,
são todos amigos,
são todos patetas

Em Davos
por estes dias
não há lugar para poetas

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Que não me falte o ar

Estou aqui muito longe
do sítio onde correm águas cristalinas
e onde as musas bailarinas
enchem de pétalas os seus potes de bronze

Estou aqui e também estou longe
daquela pradaria coberta de papoilas vermelhas
onde pastam cavalos e ovelhas
sem se preocuparem onde acaba o horizonte

Estou aqui e daqui não fica longe
o sítio onde cai neve branquinha,
quero ir para lá a voar na minha asinha,
e se ela quebra?, virá logo ao meu encontro
o incansável Caronte

Estou aqui neste dia de manhã
com uma forte vontade de embarcar,
mas não vou embarcar,
vou, antes, ficar neste chão fofo de lã,
que, ao menos, não me falte o ar

sábado, 16 de janeiro de 2016

Noite estrelada

Noite fria, noite estrelada,
mas que imensidão tão quieta,
tão muda, tão profunda, tão sagrada,
tão secreta,
tão cheia de brilhantes,
por que razão brilhas
ó imensidão,
se não me dás os teus diamantes,
nem as tuas safiras?

Noite fria, noite estrelada,
tudo é imenso
e eu tão pequeno, tão quedo,
tão pouco, tão quase nada,
sinto-me um brinquedo
nas mãos de uma entidade
que se diverte com o infinitamente grande,
com o infinitamente pequeno,
com o efémero, com o eterno,
que se diverte com o meu medo
de ser e depois não ser

Sim,
sou um brinquedo
deste universo,
mas, brinquedo por brinquedo,
queria antes ser estrela,
mesmo que fosse pequenina,
uma estrela de pau de canela
a iluminar uma luazinha
verde e bela
habitada por princesas e príncipes,
na minha luazinha sempre a luzir
a vida seria muito feliz

Mas não sou estrela,
não, não sou estrela,
e, apesar de ter este céu
ao alcance do meu olhar,
não o consigo alcançar,
e desespero, e desespero,
e desespero ...

Digam-me que o céu
não é assim tão belo,
digam-me que ele é uma ilusão
que me é mostrada pelo poder imenso
do vazio da escuridão,
digam-me ... digam-me ...

Noite fria, noite estrelada,
tudo tão imenso e eu nada

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Mente

A mente que mente
e desmente
nunca deixa de ser uma mente
que mente,
e se não mente,
mente se desmente

Uma mente que mente
e que não desmente
perante o evidente
é uma mente carente
de um soco a quente

Uma mente que não mente,
mesmo tendo pendente
um cutelo ou uma corrente,
é uma mente potente

Uma mente que diz à gente
que o nosso tempo é uma tangente
entre o nascente e o poente
e que depois entra no eternamente
para sempre
é uma mente de um ente vidente,
talvez um dia alguém volte do tempo
que corre para lá do poente
para nos dizer se o vidente mente,
ou se o vidente não mente

Uma mente de um génio
que gera o belo e o sublime
é um balão de oxigénio
que nos inspira e redime

Uma mente que diz à gente
que nunca mente
é uma mentira,
eu diria

E quando eu minto,
digo o que diz o político,
ou o cínico,
digo:
não confirmo nem desminto

E agora?
agora vai uma aguardente,
ou um chá de menta,
está na hora
de dar um pouco de pimenta
a uma mente deprimente

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Mais um serão

Mais um serão com amigos de longa data,
como entrada,
bebemos alvarinho fresquinho
acompanhado de um paté gostoso e macio,
um mimo

Também estava muito bom
o cabrito no forno
preparado pela anfitriã
sempre alegre e hospitaleira,
ainda mantém aquela tez sã,
a cor da serra que lhe deu eira e beira

Falámos da Alfândega,
de outros amigos com a mesma panca,
de anseios que ainda temos,
do que estudamos, do que lemos,
do medo de não aguentarmos a retranca

Um dos amigos anda a estudar
hebreu clássico,
eu não lhe quero ficar atrás,
vou estudar aramaico

sábado, 9 de janeiro de 2016

A bomba H do Kim

A bomba H é como uma estrela,
a sua energia resulta da fusão
de átomos de hidrogénio,
originando átomos de hélio,
isto disse um cientista na televisão
com ar de génio

Mas a bomba H não é uma estrela,
digo eu, a gritar,
a bomba H não passa de uma panela
fabricada pelo Homem
onde cozinha um poderoso veneno
preparado para explodir e para matar
muita gente ao mesmo tempo,
espalhando o seu intenso calor termonuclear

Repito,
a bomba H não é uma estrela,
as estrelas brilham no Céu
e a bomba H é para destruir a Terra,
as estrelas compõem o Céu,
a bomba H pode descompor a Terra
e mandá-la pelos ares,
sim, a bomba H não é estrela,
é uma arma de guerra
de destruição maciça
inventada pelo Homem
para se autodestruir

- Nada disso,
dizem os homens guerreiros que têm
há muito tempo bombas H no armazém,
- elas não são para matar,
são só para dissuadir e para acalmar

Calem-se, seus hipócritas,
seus trapaceiros,
dizem isso agora
porque o Kim, o famoso Kim,
o guerreiro dos guerreiros,
diz que também a tem,
calem-se, seus hipócritas,
destruam as vossas bombas
e apaguem todas as fórmulas físicas
e químicas que são demoníacas,
calem-se, foram vocês que deram ao Kim
essas fórmulas,
calem-se, seus hipócritas

E, apesar das vossas dúvidas
manhosas,
eu acho que o Kim
tem mesmo a bomba H,
aliás,
ele é a bomba H,
ou melhor,
ele é o Homem Bomba,
como sois todos vós
que fabricais e que guardais bombas,
quem me dera poder partir-vos a tromba

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Homilia

Anoitecia naquela aldeia perdida
num planalto de granito,
chovia e fazia frio,
o sino da torre badalou quase surdo,
foi o sinal de que já estava tudo recolhido
debaixo das telhas de canudo

Não havia luz para iluminar as vidas
e a única telefonia sem fios
da aldeia não tinha pilhas,
a próxima estava a milhas,
só havia notícias
à saída da missa

Depois de comidas
as migas,
deitaram-se os corpos nos leitos de ferro
com colchões de palha e de camisas,
um homem macho e bruto
saltou para cima do corpo aberto
da fêmea mulher e espremeu o seu fruto

O macho homem adormeceu logo,
a fêmea mulher ainda foi amamentar o filho
mais novo,
e assim se apagou o fogo
que ardia no seu interior mais íntimo

Os outros três filhos já dormiam,
adormeceram com frio e a chorar por mimo

Temos que suportar esta vida de sacrifício
para merecermos o paraíso,
pregava o padre na homilia

domingo, 3 de janeiro de 2016

Adeus, Presidente

Ele despediu-se
a falar de incertezas,
estava bem vestido,
melhor seria estar despido
das suas absolutas certezas
que, desde 1985, nos tem pregado,
claro que, do que correu mal,
ele não é culpado
de nada,
os culpados não lhe deram cavaco

Parece que nasceu
num dia de nevoeiro,
não se via a cotovia
nem o canteiro,
em vez de hortelã
colheram ortiga
e deram-lhe a poção
errada

Adeus, Presidente

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Feliz 2016

Feliz 2016
para mim, para vós,
para os ricos, para os pobres,
para os velhos, para os novos,
para os fracos, para os fortes,
para os que não têm voz,
para as ovas, para os ovos,
para todos os povos

Feliz 2016
para vós que governais a grei
e que criais e aplicais as leis,
aumentai os decibéis
da justiça e da verdade,
desandai os carrocéis
que espalham a felicidade,
acabai com as guerras
e com os dogmas cruéis,
cobri antes o mundo de paz
e de anéis

Feliz 2016
para os banqueiros que nos lixaram
e para os políticos que com eles privaram
e que deles receberam muitos miminhos,
aconselho-os a não saírem de casa,
a rua está assombrada, vêem-se submarinos
a voar e das portas e das janelas
saem sons aterradores
de orquestras a tocar tachos e panelas,
fiquem, pois, quietinhos à lareira a rezar,
assim não partem as canelas,
nem perdem a voz

Feliz 2016
para vós fabricantes e traficantes de armas,
de drogas e de falsas felicidades,
podeis continuar a provocar guerras e desgraças,
ninguém vos fará mal, mas eu rezo todos os dias
para que todas as armas ganhem ferrugem e bolores
e que os explosivos só espalhem coloridas flores,
sim, ainda não perdi a esperança nas minhas utopias

Feliz 2016 para todos
e também para os deuses
que habitam o Céu,
que haja paz entre eles
e que espalhem essa paz pela Terra
enterrando o terror
que os guerreiros homens
semeiam em nome deles
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Feliz 2016 para todos