terça-feira, 31 de maio de 2016

Para o António de Campolide

Olá, caros leitores,
hoje não vou escrever sobre as minhas dores,
estão fartos de saber quais são, não é?
mas não tenham dó
Hoje escrevo para agradecer ao meu amigo Tó,
o António de Campolide,
que me escreveu o seguinte
quando me visitou nesta minha lide
ao perceber, como médico,
que a morte me estava a fazer um convite:

"Fica! Não desistas
 Corre o mundo como um rio
 Que a vida quer mais conquistas
 e de ti um desafio"

Diz o Tó ainda
que eu lhe segredei em surdina
"Tira essa mancha que sinto dentro da minha cabeça"
Depois ter-lhe-ei pedido água,
aliás,
dizem-me que nessa altura eu estava sempre a pedir água
e não a podia beber
porque me engasgava
e sobre tudo isto ele escreveu-me o seguinte:

"Talvez seja eu que um dia e em posição supina
água e afecto te peça
pois que no embalo do tempo não há instantes em vão
e a vida em cada momento tem sempre a sua razão."

Obrigado, Tó,
quero que saibas
que pelo menos agora
já posso beber água à vontade
pela minha mão
e desejo que nunca tenhas a sede
que  eu senti então

sábado, 28 de maio de 2016

Hipertonia

O meu corpo está em regime de hipertonia,
é um bom nome para um restaurante ou para uma cadeia
de supermercados, ou para uma pastelaria

Mas por causa dessa hipertonia
a minha fisioterapia
é muito dolorosa,
cada movimento da perna
é acompanhado de um grito de dor
aiiiiiiiiiiiiii aiiii ai ai ai ai ai
a perna parou e o músculo berra
não estica, não dobra, não sai
do sítio, não quer subir a serra
- para cima, para baixo, vai, vai,
grita a terapeuta como dona da guerra,
e a perna não sai, não sai
de baixo, não descola da marquesa

O mesmo se passa
com o meu esquerdo braço
não faz nada
e pesa como um maço,
só atrapalha
e não sai de cima,
nem de baixo,
espero que a tizanidina
acabe com mais esta baixa
na minha auto-estima

Para cima, para baixo,
vai, vai, vai, vai,
Preciso de uma massagem
para fazer esta viagem
vai, vai, vai, vai,
e ficar na paragem
Encontro com a morte

Quiseram o fado
e a minha sorte
que tivesse há pouco encontrado
a senhora morte
É uma senhora de figura humanóide
esguia e vestida de preto
parecida com um espermatozóide
Tem cabeça pequena, muito pequena
Estava encostada ao gaveto
entre a empena
e a porta da enfermaria
onde eu dormia
Estive toda essa noite de quarentena
tinha alguém a olhar para mim
fixando no meu rosto
a luz de uma lanterna
Eu disfarçava não ser o alvo,
talvez não estivesse salvo,
sentia-me mal, muito mal
À beira da porta, branca como a cal
a morte sorria para mim
Mirei-a bem, voltou a sorrir
e aí tive a certeza de que era o seu alvo
Vi-lhe os dentes manhosos de marfim,
manteve-se direita e eu não podia fugir
estava colado à cama como as flores
jazem num cuidado jardim
inundando-o de cores

Pelos vistos não morri
nessa noite
De manhã o meu vigilante
levantou-se afoito
e disfarçou, saiu do quarto elegante
como quem diz
"Terminou o meu turno, despego às oito;
ele respira bem apesar de ainda ofegante,
ainda não foi desta que este esticou o dito"

A morte esfumou-se com os primeiros fluxos
das luzes do dia
que entravam por um buraquito
da janela do hospital dos Capuchos
mas como estava muito aflito
decidiram os médicos bruxos
que eu deveria ir de maca
para o hospital de Santa Marta
com a minha carcaça
entubada, sem dor
para continuar a respirar
ao ritmo de um ventilador

Nas noites seguintes
continuei a resistir
ao sorriso dos dentes de marfim
da figura de preto sinistra
que continuava a sorrir para mim
e não me largava
nem no Santa Marta

Safei-me
com grandes sequelas,
queimei as velas
que orientam e sustêm
os músculos
do meu corpo

Do lado esquerdo
estou como morto
mas já perdi o medo
de por enquanto não sentir qualquer progresso
Adeus, caros leitores,
até ao meu regresso

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Flores amarelas

Flores amarelas
no meio de um prado verde
são fonte de calor que arde nas telas
ou os olhos de alguém
que quer ver-te

Ou foi o pincel que caiu
das mãos do pintor
e manchou o verde puro
que era a única cor
que o pintor queria
ver no seu futuro

Flores amarelas
no meio de um prado verde
são aguarelas
que não jogam com o painel
ou serão os olhos de alguém
que quer ver-te
a pintar com o teu pincel?
Ou serão apenas focos na paisagem
do fim de tarde que queres passar
para o papel
sem conseguires
porque não estás a ver o mar?
E mesmo que te vires
também não o verás
E se aonde estás
não te chegam as flores amarelas
lavadas com aguarrás
imagina que elas
são ondas perfeitas do lamento
de um mar cheio de velas
que navegam ao sabor do vento


terça-feira, 17 de maio de 2016

Tão longe

Estou tão longe de lá,
lá onde corria e pulava,
onde dormia e sonhava
Ó correntes que me prendem aqui
desliguem-se e deixem de apertar
o meu coração e o meu rir

Estou muito longe de lá, onde mora
quem me embala, estou preso a uma cama
e a quatro rodas, quero ir embora
para ao pé de quem me ama
Bomba-relógio

Tinha uma bomba dentro de mim,
fazia tic tac tic tac,
rebentou fez atchim
e o meu cérebro fez poc, pac pac pac
resultado: fiquei paralisado
do meu lado esquerdo e dói, estala
está rijo como uma estaca
de ferro e não verga nem se rala
com a minha vontade

Podia ser pior, podias ficar sem memória e sem fala
diz-me alguém com amizade
é verdade,
mas a minha realidade também é má,
estou preso e não dá
nem para lá nem para cá

sábado, 14 de maio de 2016

Uma luz

Um, dois, três, quatro
é o barulho dos passos
da minha mulher
que me visita no quarto
Quando ouço esses passos
fico aliviado
e todos os dias os ouço
São como uma luz que ilumina o meu triste fado
de paralisado
Ela prepara-me o almoço
E pronto, já dizem que sou muito mimado
por ter esta luz
que adoça a minha cruz

[A minha mulher chama-se Maria da Luz.]

sexta-feira, 13 de maio de 2016

À tardinha aquela aldeia

Aquela aldeia
que eu vislumbro
no sopé de um monte
é o meu mundo
é o meu horizonte

À tardinha
naquela aldeia vizinha
circulam carros
vivem pessoas
nas suas casinhas
vivem em casas brancas
de vermelha telha

Os prados são verdes
verdes de erva verde e fresca
os prados têm redes
não passeiam lá animais de brinco
com fome de verde
para o transformarem em leite branquinho

Queria passear lá
pisar aquele verde
imaculado, da cor da planta do chá
e por tanto querer passear lá
já prometi
que hei-de pisar aquele verde
um dia
naquela aldeia
ao entardecer

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Inveja

Pela primeira vez na minha vida
senti inveja de alguém
que passou por mim a andar
de forma elegante e altiva
Ao pé dele, sou ninguém
estou sentado numa cadeira de rodas a cismar
e a desenhar uma ideia pouco criativa
que não vale um vintém

Inveja, o mal do homem
pecado mortal
Que ninguém passe fome
é o que desejo a quem vive
neste vale
Que ninguém se prive
da água, do alimento e do sal
e de outros temperos
que não façam mal

Na fila de espera para a fisioterapia
ao meu lado estava uma
velhinha que me pedia
ajuda, ajuda, ajuda
Eu disse-lhe "não posso
ajudá-la", aconselhei-a
a pedir a Deus que a acuda
e dei-lhe a minha mão,
depois mirei-a
no rosto:
não era feia, senti que
ficou no momento mais aliviada
Disse-me que viveu com muito gosto
que teve uma vida airada
e que agora não tinha nada

A velhinha deixou-me a chorar
e eu nem sequer tinha um lenço
para me assoar

sábado, 7 de maio de 2016

Contratempos

Mais contratempos que atrasam
a minha recuperação:
uma luxação no ombro
na perna um trombo
Por vezes não encontro a razão
para tanta sombra
Dias e dias a olhar para o tecto do quarto
a pensar, a pensar no meu azar
Meu Deus, estou farto, farto, farto
de não poder andar

Felizmente tenho ajuda
de muita gente
Que não me falte esta ajuda
especialmente
da minha mulher
e das minhas filhas
a quem muito quero
Adeus, senhora Maria das Dores

A senhora Maria das Dores
foi transferida
e não queria
Disseram-me que a levaram
às 4 da tarde em ponto
sem lhe dizerem para onde ia
Chorou toda a manhã

A senhora Maria das Dores
era minha vizinha
e já muito velhinha
sofria com muitas dores
nas suas perninhas
cheias de feridas às cores
conversava muito bem
tinha um discurso muito lógico
falava muito dos filhos, ambos pilotos

A senhora Maria das Dores
deixou de ser minha vizinha
às 4 da tarde
Não tive tempo de lhe oferecer flores
levaram-na sem eu ver
às 4 da tarde enquanto eu dormia
deveria ir a chorar e a gemer com dores

Adeus, senhora Maria das Dores
até um dia

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Algália

Tiraram-me ontem a algália,
último cateter
da minha parafernália,
bebi água do Zêzere
e mijei na fralda

Não fui a tempo
de pedir o urinol
não contive o êmbolo
que trabalhou como um fole

É normal, diz a enfermeira
agora tem de se habituar
sem a algália-torneira
até conseguir aguentar
a torrente mijaneira