domingo, 31 de julho de 2016

A minha perna esquerda

Preciso da minha perna
para calcorrear os outeiros
os vales e a charneca,
mas o joelho não estica
e voltei à idade dos cueiros

Ainda não ganhei a guerra
mas hei-de combater até ao fim
para tornar a percorrer
os carreiros da minha serra
a apanhar alecrim
rosmaninho e amoras
com sabor
a açúcar e a mel
e com o ardor
dos picos das silvas na pele
que causam dor
como se avisassem
"Se queres estas amoras
tens de sentir as picas
não levas das minhas iguarias
sem que nesses dedos te firas"
Sim, a silva não é uma lira
ela pica e pica bem
até faz sangue
O silvado
é um enxame de picos
que não quer ser incomodado

Isto a propósito
de eu ir daqui a pouco
ser picado com toxina botulínica
nos músculos que não esticam
Espero não ficar rouco
com a dor que vou sentir
nem mouco com as ordens
que vou ouvir
"Estique o joelho, respire fundo
descontraia os músculos"

E depois nada, só a desordem
do meu corpo torcido
que já não dá pulos

sexta-feira, 22 de julho de 2016


Voltei a casa

Voltei a casa,
só para passar o fim-de-semana,
voltei a casa, mas não voltei a casa,
a casa é a mesma,
a mobília também,
a família também,
eu é que não sou o mesmo,
parece que vim do além
estou como uma lesma
que se lamenta
de ser muito lenta
e não poder morder ninguém

O vento uiva
através da janela
entreaberta
e quando o vento uiva
e não traz chuva
é porque não activa
o coração da nuvem,
não passa de aragem muda
sem vida,
o vento que agora
sopra
dentro de mim
também não tem vida
porque o meu cérebro
deixou de activar
a função de andar
e eu quebro
porque este vento só uiva
e não traz chuva
para despertar
o meu cérebro,
"Tens de esperar
muito tempo.",
responde a LUZ
ao meu lamento.
E este vento, este vento
continua a impor
o seu seco uivo andaluz
que não traz chuva, só muito calor
e sobre mim voa um mosquito
que gostou do meu cheiro a dor,
vai-te embora, mosquito,
que não te posso espantar
porque só tenho ao meu dispor
a mão direita que está a teclar

Desculpem-me, caros leitores, esta desordem de palavras,
elas queriam ser quadras,
mas uma forte aragem mandou às malvas
a geometria
da poesia

quarta-feira, 20 de julho de 2016

O meu urinol

Na cama do hospital
mijo no urinol
debaixo do lençol
mas às vezes corre mal
O apêndice não fica mole
e lá sai uma mijareta
para fora do urinol
e fica molhado o lençol

Depois vem o enfermeiro
ou o auxiliar
e gritam para o quarto inteiro
"O senhor ainda não sabe mijar
para o urinol"

O meu urinol
é um recipiente
de plástico inteligente
"com medidas apropriadas
à função",
diz o enfermeiro ao doente
mas para mim são erradas
porque a minha mão
não prende as amarras
do urinol
e lá se vai a função

domingo, 10 de julho de 2016

França - Portugal

Hoje vou ser patriótico
que ganhe a selecção do meu país
mas não estou eufórico
com a ilusão de ser feliz
que me vendem os que põem os pontos nos is

Sou categórico
se a selecção do meu país
perder hoje
não deixo de ser feliz
que ganhe o que melhor jogue
a bola que não tive
quando era petiz

Vou ver a bola
deitado na cama de um hospital
e pouco ou nada me consola,
não me levem a mal,
por enquanto ainda não perdi o juízo
mas hoje sou quase francês
que seja golo na baliza do Rui Patrício
ou na baliza do gaulês
tanto me faz
Porra, já não aguento tanto bulício
por causa de uma bola
Chega de fogo de artifício
Homo erectus

Já não sou homo erectus
sou homo sentadus
e homo deitadus
porque tenho pernas de insectos
não esticam e os calcanhares
não assentam no chão
"sem fazer isso
não poderás
andar"
avisam-me os terapeutas
que não conseguem controlar
os meus espasmos

Pronto
já não sou homo erectus
fico tonto
só de pensar que já não faço jus
ao grande progresso dos
homens que se levantaram de pé
e evoluíram nesta terra até
a dominar
Sons da rua

Campainhas
portas a bater
lá fora falam e gritam criancinhas
ouvem-se vozinhas
de quem acabou o entardecer

Nesta enfermaria
ouvem-se sons
sons do dia-a-dia
que eu identifico
ao longe mas nunca tão perto
que me afastem
do meu estado de paralítico

Ouço reactores
de aviões
que talvez venham dos Açores
lá dentro vão pessoas
felizes e que esperam
que não faltem travões
ao aterrar em Lisboa

São reactores
com actividade frenética
porventura vêm da América
e não dos Açores
e eu numa atitude patética
imagino-me lá dentro
sentado e sem dores
fora desta posição paralítica

Os reactores
parece que vão à rasca
com vontade de mijar
ou de soltar a casca
vão em pânico
depois de atravessarem
o Atlântico

Ouço comboios
que não saem dos carris
apenas deslizam
transportam trabalhadores
aflitos para não se atrasarem
aos seus empregadores

Ouço os enfermeiros
a falar no corredor
dizem que ganham pouco
querem mais dinheiro
por vezes faço-me de mouco
quando me chamam nomes
por eu andar pouco
ou nada

Já sei
que para voltar a andar
tenho de gritar como Roger Daltrey
na ópera Tommy
"I'm free"
e partir as correntes
que me atam os membros
Mas não quero partir os dentes

domingo, 3 de julho de 2016

O meu novo vizinho

Saiu o meu vizinho,
o da cama ao meu lado,
era divertido,
saiu porque já dava um passo
com o corpo hirto

Saiu e já não ouço
as suas explosões intestinais
estilo "já não posso"
ou "já não aguento mais",
era um colosso

Mas já tenho outro vizinho.
É um convencido, não tem prós,
comenta o que se passa
na TV em alta voz
e não fala baixinho,
durante uma telenovela
ouvi um burburinho
"Grande filha da puta,
esta gaja é uma filha da puta,
cabrona, enganou o primo
matou a irmã com cicuta
e enforcou um gajo
com uma gravata"

Durante um jogo de futebol
ouvi
"penálti, penálti,
seu cabrão!
O árbitro nunca marcou falta
dentro do coração
da área,
não marcou porque é alemão,
isto é tudo uma farsa, nada é como dantes
golo! golo! golo
de Portugal!
marcou o Renato Sanches"

O meu novo vizinho
sabe da poda
sabe tudo da cadeira de rodas
e tem várias para entrega
com todas
as novidades
para todas as idades,
tamanho, etc.