sexta-feira, 26 de agosto de 2016

As cigarras

A gritaria
das cigarras
entra na minha enfermaria,
elas arreganham
as suas amarras
com muito tesão,
eu não, eu não,
nem sequer grito,
mas também estou aflito
Se gritasse
não seria ouvido
mesmo se arreganhasse
os dentes do siso

As cigarras
fazem-se ouvir
são chatas
no seu sentir
sentem calor?
também eu
sentem dor?
também eu,
na garganta
e no resto do "corredor"
por onde passa
a massa
do jantar
Elas agarram-se à resina
que é cola com aroma
a terebintina,
eu agarro-me à vida
que ainda me cola
a esta rotina
de doente deficiente a arfar
que perdeu a mola
que o fazia andar

Não, não ouçam
os meus gritos de cigarra
sem resina
mesmo que eles
soem a algazarra
longe da minha janela,
pode ser só tosse
por alergia à flanela
do meu pijama
de pano de vela
esfarrapado pela tormenta

Entretanto na M80
alguém solfeja
I will survive
Assim seja

sábado, 20 de agosto de 2016

Hoje foi outro dia

Hoje foi outro dia
e trocadilhando a poesia
do Chico Buarque
Apesar do avc (de você)
amanhã há-de ser outro dia
mesmo que eu não embarque
na corrente da alegria
com este corpo
tão torcido, tão teso que não parte
amanhã há-de ser outro dia
e talvez num desses dias
acorde de manhã
com força para andar
e para respirar as maresias
trazidas
pelo vento do mar
e então gritarei a valer
"hoje é outro dia"
e virão outras cantorias,
a esperança não pode morrer,
nem desaparecer,
mesmo quando o frio
vier arrefecer
as Olimpíadas do Rio
e congelar o seu húmido arrepio
Desabafo absurdo mudo

Estou a ver os jogos olímpicos
do Rio de Janeiro
Calai-vos,
agora falo eu,
chegou a minha vez,
estou farto de vos ouvir,
de vos ler,
de vos ver a rir,
de vos ver a comer,
de vos ver a crescer
esbeltos
e a saber viver
por serdes mais espertos,
calai-vos e escutai-me,
agora falo eu

Sou um homem
adulto
e ainda tenho quase tudo,
tenho membros, abdómen,
coração, tripas, fígado
mais os outros miúdos,
tenho coluna, nervos, fibras,
músculos,
sim, tenho quase tudo,
e só não tenho tudo
porque não sou como o David
renascentista,
ou como o grego clássico
lançador do dardo,
Ai, gostava tanto de ser como eles,
gostava de ter um alegre e belo rosto
e uma exemplar postura
num entroncado e ajeitado corpo,
um corpo fino no traço e grosso
de osso,
mas não sou como eles,
os jogadores atletas;
sou assim:
cabeça grande e dura
em cima de um pescoço de troglodita
que segura
uma papada de unto
debaixo de uma boca sempre faminta
a reclamar presunto
com uma ingénua expressão de caricatura
que não merece uma moldura,
nem uma escultura

Mas, ao menos sei falar e contar,
(dois e dois são cinco,
sei mesmo contar)
e quanto mais conto
mais me apetece mastigar palavras
servidas a quente directamente do forno,
umas para ler, outras para escrever nas horas mortas
em folhas de papel ou de couves trincadas pelas larvas
das hortas
que eu mastigo, puras ou em migas,
depois de as lavar e cozer ao lume
em grandes panelas que exalam um perfume
de roupas velhas e provocam intrigas
no meu intestino,
para, de súbito,
um bafo absurdo
o deixar tranquilo

De seguida, arregaço as mangas
e aproveito para puxar o lustro
ao orifício das entranhas
da minha carapaça
que adora o luxo
de ser uma carraça
vestida com pele de urso
branco
que vesti por engano

Pronto, já desabafei,
foi um desabafo absurdo mudo,
agora calo-me e volto ao meu mundo,
ao meu mundo real,
sim, volto ao mundo real,
ao mundo dos reis,
porque eu sou Rei
O coro dos sapos deprimidos

Vivemos em sacos viscosos
bem atados e comprimidos,
não há quem se ocupe de nós,
somos os sapos deprimidos

Passamos a vida no lodo
enlameados e esquecidos,
nem sequer servimos de engodo,
somos os sapos deprimidos

Queremos ser como as rãs,
queremos vir dos seus girinos,
são mais ágeis, mais elegantes,
queremos ser sapos bonitos

Refrão:
Estamos fartos de ser sapos,
queremos antes ser ouriços,
estamos fartos de ter papos,
somos os sapos deprimidos

Eu sou um sapo deprimido
metido num saco de pele,
tenho fome e estou ferido,
sirvam-me um pouco de mel

Eu sou sapo e não tenho dentes
para morder quem me pisa
e para afastar as serpentes
que querem a minha barriga

Eu choro muito por ser sapo,
os outros sapos só dão bufas,
mas lá vão enchendo o papo
e não passam por cagufas

Estou farto de ser sapo,
quero antes ser ouriço,
estou farto do meu papo,
sou um sapo deprimido

Serei apenas um sapo bobo
e tenho que gramar
o amargo do fel
e sentir o frio do lodo
a arreganhar
a minha pele

Somos sapos
Mas queremos ser modelos
de animais benquistos,
mas isso é só para os coelhos,
nós somos só sapos deprimidos

Refrão:
Estamos fartos de ser sapos,
queremos antes ser ouriços,
estamos fartos de ter papos,
somos os sapos deprimidos

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Ó lua, enche-te de luz

Ó lua,
porque vais nua
quando alumias
a minha rua
nas noites frias?
Tens luz fraca
só para chatear
quem dorme ao
luar na praça
Veste-te, ó lua
e enche-te de luz
para mostrares bem a desgraça
de quem dorme na rua
O meu casulo e o forró

Estou no meu casulo
e lá de fora
chega-me
a algazarra e o barulho
do forró
de gente alegre aos pulos
que não levantam pó
"Aquela morena gosta de caçulos
e é meiga a dar o colo",
canta o cantor de música nordestina
e vira e vira e vira
manda a concertina
que esta noite ninguém durma só
e vira e vira e vira
cada um a seu gosto
manda a mana Albertina
com lábios de pó-de-arroz

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Gungunhana

Ao meu lado
na outra cama inteligente
está agora deitado
um ser imponente
Parece o Gungunhana

À noite liga a turbina
ressona, ressona, ressona
parece uma sanfona
e não desafina
Como ele só fala crioulo
só o ouço
quando ressona
enquanto eu faço parte da bruma
e não sei se ressono, se tenho sono, se sonho
talvez até nem durma
Uma noite no hospital de São José

Por suspeita de novo avc
fui parar outra vez ao São José
estive uma noite em observação
"O quê, outro avc?
Não pode ser!"
dizem vocês
e com razão

Bom, lá passei pela urgência
no meio da confusão,
No serviço de observação
estava ao meu lado
um doente hemofílico
a beber sangue e factor oito
congelado

Mais longe, naquele espaço acrílico
estava uma rapariga de Portalegre
que tinha desmaiado
na casa de banho
Foi um desmaio breve
e saiu do hospital de Portalegre
com suspeita de um quisto no cérebro,
veio de helicóptero para o São José
Vai ser operada
Eu disse-lhe que iria dar tudo certo
na operação
aparentemente ela ficou descansada
Depois vieram vê-la um irmão
e uma tia
que também lhe disse que seria
uma operação simples, que ela
conhecia várias pessoas
que tinham passado pelo mesmo
e ficaram boas
e lá veio a tradicional
recomendação para ter fé,
esperança e força de vontade

Naquele espaço acrílico
estava também um senhor
que tinha querido acabar com a vida
sem dor
tomou comprimidos e um insecticida
mas não resultou
O enfermeiro perguntou-lhe se ele
sabia porque estava ali
e foi por isso que eu também soube
da sua história:
estava a atravessar um processo de divórcio
não pacífico
e foi parar
àquele espaço acrílico
e queria ir embora
O enfermeiro disse-lhe que a sociedade
não queria que ele voltasse
a fazer a mesma obra
e por isso estava no hospital
entregue ao serviço de psiquiatria

Dormi o resto da noite
e quando acordei não sabia
que já era outro dia

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Espelho *

Ó espelho,
porque me vês velho?
Ó espelho meu,
espelho mau,
porque me vês um calhau
caído do céu,
com rosto humano,
perna de pau
e o resto ao léu?
Vai-te, espelho
não me mires mais,
através do teu reflexo
vejo-me um escaravelho
a empinar um seixo
que não quer rolar
até ao mar
que não vejo
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* Este espelho existe,
está posicionado hirto e insiste
durante todo o dia
no ginásio
onde faço
fisioterapia,
onde cada passo
que dou
é uma conquista